Ideal ilegal, a periferia e a cidadania brasileira no olhar de James Holston


LUCIA ANTONELA MITIDIERI
Universidad Nacional de Mar del Plata
Facultad de Arquitectura, Urbanismo y Diseño
Instituto de Investigaciones en Desarrollo Urbano, Tecnología y Vivienda

Recibido
26 de septiembre de 2019
Aceptado
10 de marzo de 2020

Cidadania Insurgente. Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil.
James Holston. 2013. Companhia das Letras. 488 páginas. Idioma: Portugués
ISBN 9788535923032

A pesquisa etnográfica proposta por Holston no seu livro, Cidadania insurgente. Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, revela processos, mecanismos e práticas da cidadania brasileira, perpassando o limite do observado ao desvelar a história como argumento sobre o presente. As cidadanias modernas que o autor procura compreender, contemplam a agência histórica da ocupação de terras no país. Elas são permeadas pelo paradigma das “diferenças legalizadas”, uma tática política das elites que irão procurar e proclamar a legalização do ilegal como mais uma forma de controle.

A partir de um olhar completamente “por dentro”, defende a ideia de que a ocupação massiva dos territórios da periferia trouxe uma nova perspectiva à cidadania do Brasil. Os casos estudados pelo autor, localizados na periferia leste da cidade de São Paulo (Jardim das Camélias, Lar Nacional), mostram o engano que os moradores experimentaram ao comprar os seus lotes em transações ilegais, sujeitos posteriormente a processos de reintegração de posse.

O livro está dividido em quatro partes: a primeira, rupturas, analisa algumas características da cidadania específica, a semente da cidadania diferenciada, aquela formulada para distribuir direitos a uns cidadãos e nega-los a outros. A existência de categorias específicas de cidadãos se deve, principalmente, ao sistema legal de direitos que faz uma distinção bastante porosa entre o legal e o ilegal.

A segunda parte do livro é a mais contundente no que respeita à análise histórica e, ao mesmo tempo, etnográfica para compreender os fatos do presente. Sob o tema desigualdades, Holston vai expor como a reprodução crônica da diferença provoca uma “cidadania includentemente desigual” (p. 69). Ao fazer uma comparação com a evolução da cidadania francesa, conclui que a cidadania que rege no Brasil desde 1824 não nega os direitos e deveres dos cidadãos por razões raciais ou religiosas. No entanto, por mais que aparente inclusão, esta não deixa de ser excludente em vários aspectos, um deles é a limitada cidadania política. Dessa forma, como parte de uma desqualificação seletiva baseada em distinções para diferenciar cidadãos, a maioria dos brasileiros (mulheres, pobres, analfabetos) foram excluídos durante grande parte da república (1881-1985) da possibilidade de eleger aos seus representantes.

Uma democracia eleitoral limitada (1945-1964), uma ditadura (1964-1985) e a retomada à democracia se corresponderam com a passagem de um Brasil agrícola para um Brasil urbano, onde, embora o surgimento das periferias tenha sido significativo como força política a partir dos anos 1960, não deixava de perpetuar um modelo de cidadania que enfatizava as diferenças.

Desde a colônia, o sistema de distribuição de terras no Brasil foi feito sobre exceções e irregularidades legais imensas, o que levou às elites a conseguir a legalidade das suas grandes porções de terra em base a falsos arranjos. No entanto, os mais pobres sempre foram estigmatizados e criminalizados pela ocupação ilegal da terra, sendo essa a única forma de obtê-la que eles (ainda) têm. As condições ilegais dos loteamentos (como negócio) tornaram à terra acessível aos brasileiros pobres, viabilizando o sonho da casa própria (que vendiam dentro desse negócio) e o sonho da propriedade –não obstante, muitas injustiças sejam cometidas ao redor desses ideais. A autoconstrução foi a principal ferramenta de acesso à casa própria, contudo, a expansão periférica que essa prática possibilita constitui, segundo Holston, um paradoxo espacial: cada instância de autoconstrução reproduz a periferia. Quer dizer, na medida que os autoconstrutores transformam as suas casas e urbanizam os seus bairros, essas melhoras produzem um deslocamento para novas áreas cada vez mais distantes, e por tanto, de transformação e reprodução das condições de pobreza e precariedade constante.

Na terceira parte do livro, insurgências, Holston encara a descrição da mudança dos princípios de diferenciação que durante muito tempo legitimaram uma formulação especialmente desigual da cidadania. A ilegalidade residencial dos moradores nas periferias emergentes gera uma insurgência de direitos políticos e civis. As pessoas começam a tomar consciência, se mobilizar e usar a lei para deixar de ser vítimas de enganos e despejos e, assim, validar a sua posição de construtores da cidade.

Em seguida descreve o surgimento de uma nova cidadania urbana baseada em 3 processos: 1) esfera pública alternativa de participação 2) nova compreensão dos direitos a partir da consciência do direito a direitos e 3) a transformação da relação entre o Estado e o cidadão. Novos arcabouços legais e práticas de tomadas de decisão se configuram como alternativas às relações clientelistas de dependência. No entanto, uma cidadania diferenciada ainda se manifesta, por exemplo, nos direitos trabalhistas o que, ao mesmo tempo, puxa para o surgimento de uma nova forma de encarar a cidadania. “Foi em contraste com as restrições, regulamentações e repressões da cidadania […] condicionada ao trabalho, que surgiu a maior parte das periferias ilegais, autoconstruídas […] como espaços autônomos para as classes populares” (p. 257).

A concepção de direitos como privilégio de certas categorias de cidadãos tem sido a base do sistema de cidadania diferenciada. Aqueles que possuem direitos na sua condição de cidadãos os merecem porque são moralmente bons e socialmente corretos, reconhecidos publicamente, o que implica um tratamento especial. “Num sistema de direitos de cidadania baseado na imunidade de alguns e na incapacidade de outros, os direitos se tornam relações de privilégio que atuam sem a obrigatoriedade do dever para com aqueles que não tem o poder de impor suas reivindicações” (p.333). Que seja defendido um tratamento especial legitima a distribuição da desigualdade, o que confirma a contradição da cidadania diferenciada de lógica compensatória dentro da própria classe. Outro gênero de direitos que surge nas novas esferas participativas da cidadania são os chamados “direitos de contribuidor”, reivindicações legítimas com base nas suas próprias contribuições (proprietário de imóvel, pagador de impostos, consumidor de massa) à própria cidade. A importância que é dada ao conhecimento dos direitos por escrito implica o ganho de confiança necessária para conquistar respeito. Essa mudança depende de os cidadãos conceber sua cidadania como meio de estabelecer uma base comum de parâmetros iguais entre si. “Apoiados no direito a direitos estruturam uma esfera cívica categoricamente diferente daquela baseada nos tratamentos especiais” (p. 320).

Na última parte do livro o autor analisa as contradições da cidadania civil, as disjunções das práticas sociais que, ao mesmo tempo que proclamam a igualdade, estão perpetrando novas desigualdades, injustiças e discriminações. Neste ponto examina como certos privilégios são dominados pelas elites em vários aspectos, desde a arquitetura que designa lugares diferenciados até as relações de indiferença e constante privatização do espaço público. Ao mesmo tempo, grupos criminosos e polícia abusam do discurso democrático como desculpa das suas ações de violência e o sistema judiciário, por sua parte, fica cada vez mais desacreditado. Em correspondência, os cidadãos têm cada vez mais contestado essas práticas injustas e discriminatórias a través de novas incivilidades, expressões da cidadania insurgente que proclama com as suas ações de confronto tanto mudanças democráticas como novos tipos de violência. No entanto, as disjunções da cidadania, o mau governo da lei, a ilegalidade como norma de residência, a restrição da cidadania política e da educação, a violência do Estado, configuram, segundo Holston, uma democracia emergente, paradoxal. Isto é, ao mesmo tempo que se perpetua a cidadania diferenciada, existem ações para a sua desestabilização, progride um modelo de injustiça-democracia, justiça-impunidade, segregação-direitos e, nesse jogo de binômios dicotômicos, a insurgência encontra o seu espaço para contestar ou restaurar velhos paradigmas.

Dessa forma, a partir da genealogia apresentada pelo autor em base aos quatro pontos estruturantes será possível compreender como a cidadania brasileira tem se configurado como várias rupturas, num regime de desigualdade e ilegalidade que gerou impulsos insurgentes, no entanto, permeados de disjunções ■


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Mitidieri, L. A. (Noviembre 2019 – Abril 2020). Ideal ilegal, a periferia e a cidadania brasileira no olhar de James Holston. AREA, 26(1). Recuperado de: https://area.fadu.uba.ar/area-2601/r-mitidieri2601/