Universidade Federal de Goiás
Campus Goiás
Resumo
Este texto circunscreve um campo provisoriamente nomeado cinema-cartografia, em que são conectados o modo de pensar cinema e o modo de pensar cartografia por uma reflexão crítica de posições desde o Sul global, a partir da hipótese de que as linhas retas sintetizariam o pensamento moderno ocidental. Apontam-se estratégias em práticas audiovisuais que relacionam criticamente filmes e mapas, visando discutir experimentações metodológicas, em um procedimento a mapear-filmar-pensar-escrever, em vistas de pensar um problema em cinema desde o Sul global.
Palavras-chave
Cinema, Cartografia, Mapas, Filmes, Crítica
Recebido
29 de abril de 2022
Aceito
28 de fevereiro de 2023
Introdução
Este texto tem como objetivo mais central circunscrever um campo provisoriamente nomeado cinema-cartografia, em que são conectados o modo de pensar cinema e o modo de pensar cartografia por uma reflexão crítica de posições desde o Sul global, a partir da hipótese de que as linhas retas sintetizariam o pensamento moderno ocidental.
A ideia de um cinema-cartografia é inspirada na obra Cinematographic Cartography (Conley, 2007), em que o autor aposta haver sombreamentos, correlações e importantes conexões entre posições de duas formas de pensamento: os mapas e os filmes.
Como modo de reflexão, proporemos circunscrever o campo ampliado das cartografias e realizar apontamentos no campo audiovisual, evidenciando estratégias em práticas próprias de realizações audiovisuais relacionadas criticamente filmes e mapas, visando discutir experimentações metodológicas, em um procedimento a mapear-filmar-pensar-escrever, em vistas de pensar um problema em cinema e cartografia desde o Sul global, a partir de uma perspectiva associada.
Em primeiro momento, destacamos que partimos de uma compreensão de que as cartografias, muito centradas na figura-objeto dos mapas, durante muito tempo e ainda atualmente, têm sido uma das formas de se manterem e se consolidarem as relações de poder. Como bem mostra Denis Wood (1992), os mapas funcionam a serviço de interesses imperceptíveis, imersos na história que eles ajudam a construir, tornando visíveis e invisíveis o que desejam mostrar e a quem servem. Portanto, como bem destaca John Pickles (p. 12 apud Crampton e Krigyer, 2006), “em vez de procurar como podemos mapear o objeto… [poderíamos] nos preocupar com os meios pelos quais o mapeamento e o olhar cartográfico codificaram objetos e produziram identidades” (p. 89).
Por conta disso, esta reflexão parte de uma compreensão cartográfica de enfrentamento e não de retórica. Por meio de distintos pensamentos para perguntar sobre os meios vigentes; compreendê-los; e realizar outros tantos novos, sendo necessário, para isso, desvelar os processos que constituem as próprias cartografias e os questionar, pois os mapas ativam o território a todo tempo, articulando-se de tal forma que podem ser importantes mecanismos de transformação social. Lembramos, portanto, que “o objeto-mapa” não diz de uma totalidade, mas de uma dada realidade –a partir de um “sujeito-observador”– que precisa ser desvelada.
Ao mirar isto, compreendemos a necessidade de fugir de binarismos relacionados aos mapas, como nos orienta Bryan Harley (1990a) –arte/ciência, objetividade/subjetividade e científico/ideológico–, e trabalhar com sua efetiva contextualização: enquanto documentos e arquivos de uma sociedade, em um determinado tempo histórico, político e social. Mais do que isso, é fundamental que observemos mapas como objetos estético-políticos, como visto em outros campos: por exemplo, na arte, por meio dos mapas surrealistas, os psicogeográficos do Situacionistas e as práticas cartográficas de Cildo Meireles. E há que torná-los ainda mais atuais, como as práticas de mapeamento open-source, tal qual o Open Street Maps, e as realizadas no próprio sistema da Google.
Para tal, pensamos numa perspectiva cartográfica cuja realização requer outros procedimentos cartográficos de modo consciente, evidenciando o que se deseja cartografar, por que e como o fará, tendo em vista a profusão das mais variadas formas de mapeamento e da disponibilização de dados contínuos sobre quem e o que está sendo mapeado.
Ao passo que mapas predominantes de sistemas cartográficos têm se tornado cada vez mais abertos, de fácil manipulação e acessíveis, as formas com as quais eles têm sido disseminados, em muito, também contribuem para um uso que fere princípios éticos sobre o que e quem está sendo mapeado. Há, portanto, no cerne de uma outra atuação cartográfica, a necessidade de uma conscientização a propósito do conteúdo que está sendo cartografado. Nesse sentido, temos pensado uma relação entre mapas e filmes como fundamental para manifestar outro pensamento cartográfico, abrindo os mapas para outras leituras possíveis.
Entre mapa e filme: demarcando posições
Um espaço fílmico é, também, um espaço cartográfico, já que “um mapa sublinha o que é um filme e o que ele faz, mas também abre uma fenda ou traz à vista um local onde uma relação crítica e produtiva interpretativa com o filme pode começar” [1] (Conley, 2007, p. 3, tradução nossa). No entanto, um mapa não é um filme, mas o primeiro fornece uma série de motivos para os efeitos cinematográficos do segundo, desse modo, assim como o filme, o mapa tanto produz discursos quanto constrói territórios. Um mapa em um filme contém uma história dentro de outra, podendo evidenciar ainda mais o invisível para além do mapa. Ao observarmos um mapa como imagem, em qualquer sistema cartográfico, quais perguntas podemos fazer diante dele?
Em experiências audiovisuais realizadas ao longo dos últimos anos, por meio de operações de montagem em linha do tempo repletas de justaposições, contraposições, sobreposições e outras disposições de mapas e capturas de telas de mapas, temos observado o caráter ainda mais discursivo que essas linguagens associadas produzem. Ao evidenciarmos o ato de filmar como demarcação de posições, quando as conectamos, ressaltamos, também, um ato político de cartografar. É político porque faz perguntas que ainda não foram feitas e posiciona criticamente o cineasta-cartógrafo no mundo.
No entanto, se a imagem de um mapa, em qualquer sistema cartográfico, é a cristalização de um tempo, podemos mesmo fazer perguntas diante dela, já que a imagem-mapa tem conteúdo retórico? Para insistirmos em perguntas que ainda não foram feitas para os mapas, precisamos sair da ideia de imagem-mapa para a de imaginar mapa. Ou seja, devemos abrir mão deliberadamente de esquemas retóricos neles presentes, fazendo gerar dúvidas da imagem a partir dos mesmos elementos, numa operação próxima à que Georges Didi-Huberman (2013) aponta como de “rachar ao meio” a noção de imagem.
Rachar ao meio a simples noção de imagem e rachar ao meio a noção simples de lógica […] Rachar ao meio a noção de imagem seria, em primeiro lugar, voltar a uma inflexão da palavra que não implique nem a imagística, nem a reprodução, nem a iconografia, nem mesmo o aspecto “figurativo”. […] A questão ainda aberta de saber o que poderia, em tal superfície pintada ou em tal reentrância da pedra vir a ser visível. Seria preciso, ao abrir a caixa, abrir os olhos à dimensão de um olhar expectante: esperar que o visível “pegue” e, nessa espera, tocar com o dedo o valor virtual daquilo que tentamos apreender sob o termo visual (p. 187).
Demarcamos, assim, o modo crítico do cineasta-cartógrafo perguntar para o que é dado, mas, de outra forma, tensionar um sistema cartográfico. Então, antes de nos posicionarmos perante o mapa, podemos questionar também a própria noção de posição, pois diante de um mapa, há uma tendência à banalização. Logo, mudar de posição de onde se observa é uma pista que pode fazer ver diferente, em especial, pela incorporação do cinema, já que quando assistimos a um filme, necessariamente, entramos em sua geografia.
Ao adentrarmos neste sítio, requeremos compreender tal deslocamento que realizamos, muito plantado a partir do conceito de “movimento”, de Gilles Deleuze. Nele, há uma dimensão que não é a mesma de uma mudança de objeto ou cena, mas, de um todo; há uma nova atmosfera que emerge. Se há, à correspondência do espaço percorrido, a de tempo passado, na leitura de Deleuze, há equivalência entre movimento e tempo presente. Há, no limite, uma cartografia de um tempo presente na ideia de movimento.
O movimento remete sempre a uma mudança, migração, a uma variação sazonal. É a mesma coisa para os corpos: a queda de um corpo supõe um outro que o atrai e exprime uma mudança no todo que os compreende a ambos. […] Nosso erro está em acreditar que o que se move são elementos quaisquer exteriores às qualidades. Mas as próprias qualidades são puras vibrações que mudam ao mesmo tempo que os pretensos elementos se movem (Deleuze, 1985, p. 18).
Uma obra fílmica e cartográfica que tem nos mobilizado para tais questões é Nunca é noite no mapa, de Ernesto de Carvalho (2016). Nela, indagações são feitas pelo cineasta diante do sistema cartográfico da Google –constituído por Earth, Maps e Street View– sob vários aspectos, desde como a câmera realiza suas fotografias de dentro das ruas no Street View, até quais as rotas que ela captura e como as pessoas aparecem nesse sistema, a partir do chamamento ao vocativo “o mapa”, como um sujeito (Figura 1).
Esse modo discursivo e irônico do cineasta de provocar o mapa cartográfico permite que o vejamos para além de suas formas, símbolos, escalas, códigos e lógicas próprias tão usuais. Faz com que questionemos o que está sendo visto naquela imagem, e até mais: o que não está sendo visto. A viatura da Google como um panóptico vigilante nas ruas; os carros e os rostos capturados borrados para não serem expostas identidades e propriedades; o fato de as capturas dos locais só ocorrerem durante o dia; e, para nós, o que importa: de onde parte a posição de quem tudo observa. São questões levantadas pelo narrador, que, a todo tempo, questiona para quem e por quem é feito o mapa. É uma ativação possível de existir por conta das perguntas sobre ausências e presenças no mapa, estratégia bastante evidenciada quando o narrador se utiliza de negações, como a que dá nome ao filme: “nunca é noite no mapa”.
A negação e a ironia também são instrumentos utilizados na vídeo-performance Google Maps Hacks (Weckert, 2020), que expõe o que seriam supostas “falhas” das plataformas da Google. Utilizando-se das próprias possibilidades do Maps, o realizador extrapola, ao criar uma presença invisível de trânsito de automóveis, numa pacata rua em Berlim, com infraestrutura viária de paralelepípedos, a partir do envio de dados das posições de 99 smartphones (Figura 2). Utiliza-se exclusivamente de um carrinho de mão cheio de celulares que transmitem suas posições para o Maps, fazendo com que apareça uma linha vermelha na via representada pelo sistema, que, de acordo com sua simbologia, significa grande aglomeração. A crítica do artista está na forma como a Google e os sistemas cartográficos hegemônicos não só modulam as formas de ver a cidade, como de consumi-la; e, consequentemente, produzi-la, a partir de outros aplicativos que se utilizam da geolocalização. Assim, a obra atenta para dois aspectos distintos: a confiabilidade e fidedignidade já fornecida às cartografias se tornam mais evidentes nesses sistemas cartográficos; e a própria abertura à colaboratividade da plataforma que pode deixar brechas para outros usos.
A efetivação desse olhar cartográfico que tudo vê a partir de certa perspectiva evidencia e repete uma visão de mundo que deseja permanecer hegemônica: o esquadrinhamento capitalista que reproduz os traçados das cidades mais ricas, com mais acessos à infraestrutura, às redes globais de telecomunicação e informatização. Quanto mais ricas e dominantes, mais informações disponibilizadas no banco de dados da Google, a ponto de podermos entrar e sair virtualmente em certos locais como shopping centers, hotéis, parques temáticos, cassinos, entre outros.
Antes de haver o sistema cartográfico da Google, Milton Santos (2006) criticou como havia certo ideal de globalização que desconsiderava a quem de fato ela serviria. Para o autor, enquanto não analisarmos as formas de exploração e, sobretudo, quem são os que têm o controle das redes, estaremos nos debatendo em meio a um delírio técnico-científico, apresentado pelo olhar geográfico hegemônico, que desconsidera, em boa medida, as desigualdades sociais e os próprios rearranjos locais. Para ele, tal perspectiva de globalização acaba por cegar, pois, desde os países periféricos, não possuímos total acesso a isso. É por isso, portanto, que precisamos reivindicar tal mirada desde o Sul global –referência de Boaventura de Sousa Santos (1995) às regiões periféricas e semiperiféricas, bem como aos países dos denominados Terceiro Mundo, após a Segunda Guerra Mundial–.
Para nós, esta visão importa sobretudo quando olhamos desde nossa própria realidade latino-americana, mas também quando desmobilizamos o olhar colonizador pelo rastro de um certo perspectivismo ameríndio (Lima, 1996; Viveiros de Castro, 1996), em que intentamos ir além da compreensão meramente objetificada e humana sobre o modo de sermos e sobre como devemos ser. Como bem apontam Eduardo Viveiros de Castro (1996; 2015) e Tânia Stolze Lima (1996), podemos mirar em concepções indígenas que nos auxiliem a reconhecer a todos sem cedermos à cansativa redução que coloca em disputa natureza e cultura, mas que se emancipe e conjure para uma experiência de vida compartilhada: talvez deixarmos de lado um pouco as linhas retas e apontarmos para outra noção de perspectiva também pode ser um atalho.
Linhas retas: uma síntese do pensamento ocidental?
Sublinho: proliferar a multiplicidade. Pois não se trata, como lembrou oportunamente Derrida, de pregar a abolição da fronteira que une-separa “linguagem” e “mundo”, “pessoas” e “coisas”, “nós” e “eles”, “humanos” e “não-humanos” –as facilidades reducionistas e os monismos de bolso estão tão fora de questão quanto as fantasias fusionais–; mas sim de “irreduzir” e “imprecisar” essa fronteira, contorcendo sua linha divisória (suas sucessivas linhas divisórias paralelas) em uma curva infinitamente complexa. Não se trata então de apagar contornos, mas de dobrá-los, adensá-los, enviesá-los, irisá-los, fractalizá-los (Viveiros de Castro, 2015, p. 28).
As linhas retas, por meio do uso dos esquadros, podem ser uma possível síntese do pensamento moderno ocidental, orientado por premissas cujo objetivo é demarcar algo com começo e fim, abertura e fechamento, indicando onde –mas, sobretudo, como– se projeta. As linhas esquadrinhadas [2] parecem ser, portanto, a confirmação do que se deve apartar, separar, segmentar, dispor, organizar, hierarquizar; e, somado a isso, eficientemente, contribuir para o melhor aproveitamento das divisões. Mais do que separar, trata-se, principalmente, do modo como as linhas o fazem, pois partem-se dos esquadros para afirmar ser à retidão o melhor traçado.
Em boa medida, a estratégica exacerbação do esquadrinhamento das linhas parece confirmar a histórica obstinação da sociedade ocidental pela diferenciação entre homem e natureza, desenvolvida em estudos cada vez mais sofisticados, a fim de atingir a ideia de pureza e ordem geométrica. Muito evidenciada na forma “caixa arquitetônica”, cujas linhas retas parecem alcançar tal qual um produto matemático que há tempos funcionou “como a invenção do homem que o equipara a Deus, porque ela concebe um mundo abstrato de formas e números, criado quase que do nada e que não encontra correspondência na realidade objetiva e concreta” (Oliveira, 2001). O ato moderno de projetar, logo, é praticamente uma ode às linhas retas e deriva de um pensamento a criar limites e demarcar o início e fim dos lugares e das coisas.
Em importante reflexão junto ao pensamento de Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin (2014) infere sobre a origem filosófica da noção de limite (Grenze), que seria “desenhar um traço ao redor de algo para lhe dar uma forma bem definida e, portanto, evitar que esse algo, por assim dizer, se derrame sobre suas bordas em direção a um infinito onipotente” (p. 35). A filósofa relembra ainda tal premissa ser a própria tarefa do pensamento ocidental como modo de estabelecer fronteiras, o que, para nós, é elevado ao extremo quando consideramos a característica de dominação sobre os outros a partir do Norte global.
Sintetizamos que tal pensamento dominador tenha surgido, no mínimo, desde o gesto renascentista, a posicionar o homem como centro do mundo (o Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci, c. 1490), alcançando o modernista brasileiro, a traçar uma cruz –um encontro das coordenadas– no solo do planalto central do Brasil e dela configurar a nova capital (projeto vencedor do Concurso para o Plano Piloto de Brasília, de Lúcio Costa, 1956). As linhas esquadrinhadas demarcam territórios: é a fronteira do Tratado Tordesilhas (1494); são as definições das capitanias hereditárias (1530); e mesmo as mais tardias divisões geopolíticas que se constituíram ao longo da história do Brasil (por exemplo, a anexação do Acre pelo Tratado de Petrópolis, em 1903). Mais do que tudo, as linhas retas permitem concretizar e efetivar o mapa cartográfico hegemônico –formado por linhas de meridianos, latitudes e longitudes– como modo de dominação de um território.
Podemos inferir que as linhas retas da modernidade avançam a todas as etapas da invasão dos portugueses nas terras além-mar: as linhas do mapa que vão se atualizando ao passo do desenvolvimento das rotas; as linhas das capitanias; das bandeiras; daquelas à fundação das cidades coloniais. Atualizam-se com o gesto da Independência do Brasil (1822) e a demarcação de um país a ser urbanizado entre fins dos séculos XIX e XX, esquadrinhando-se nele, primeiramente, as ferrovias, e, depois, as rodovias, apartando, por fim, aqueles que não podem sobreviver dentro das grandes linhas, mas às suas margens.
Nesse sentido, posicionamos que não pensamos em linhas esquadrinhadas enquanto metáforas, logo, elas não são operadas deliberadamente, mas o contrário: a política como feita por linhas retas, já que elas vêm sendo operadas do lado de dentro: do dominante; dos saberes e dos poderes hegemônicos; da língua e dos que falam; dos que esquadrinham; e dos que decidem sobre a vida de todos.
Os territórios coloniais constituíam lugares impensáveis para o desenvolvimento do paradigma da regulação/emancipação, o facto de este paradigma lhes não ser aplicável não comprometeu a sua universalidade. O pensamento abissal moderno salienta-se pela sua capacidade de produzir e radicalizar distinções. Contudo, por mais radicais que sejam estas distinções e por mais dramáticas que possam ser as consequências de estar de um ou do outro dos lados destas distinções, elas têm em comum o facto de pertencerem a este lado da linha e de se combinarem para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas (de Sousa Santos, 2017, p. 2).
Logo, a reflexão que tem nos mobilizado nos últimos tempos passa a ser como pensar do lado de fora das linhas retas: dos dominados; dos não-saberes e dos contrapoderes; das outras línguas; dos que escutam; dos que são esquadrinhados. Estes são aqueles que, durante muito tempo e ainda nos dias de hoje, têm sido os que não participam da política porque não podem ou não têm tempo (Rancière, 1996). Pensam, sabem, falam, escutam, produzem: mas para quem? Assim, o ato de pensar em um processo que questione o que se narra por imagens –especificamente sendo de nosso interesse, mapas e filmes– tem sido uma operação possível, já que a invisibilização é a premissa do esquadrinhamento.
Esboços para pensar um cinema-cartografia
Em 2020, no âmbito do nosso doutoramento em arquitetura e urbanismo, realizávamos uma investigação que consistia na leitura de territórios urbanos a partir de rodovias brasileiras [3], por meio de um tensionamento no sistema cartográfico da Google, formado por Earth, Maps e Street View, no momento que ocorria o recrudescimento do isolamento social advindo da recém-instalada pandemia de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde.
Àquela altura, estávamos extremamente preocupados com os rumos que o mundo tomaria, tendo em vista a necessidade de isolamento social. Era um momento em que realizávamos reflexões sobre como o sistema cartográfico da Google –já abundantemente predominante– disponibilizava, diariamente, modos de aproveitar a permanência em casa de parte da população mundial para gerar novas formas de uso e de consumo por meio de suas plataformas.
Tal sensação de mal-estar, ao sermos apartados da presença nos espaços públicos, nos provocou reverberações que nos fizeram tentar implodir, em alguma medida, o sistema a privilegiar acessos ao extrato populacional dominante: homens, do Norte global, com boa qualidade de infraestrutura urbana e internet. Surgia assim a ideia de realizar o filme Navegares imprecisos (Teixeira Ramos, 2021a), em que convidamos colegas e amigas para atualizar reflexões de Rosalyn Deutsche (1998) acerca da presença agorafóbica das mulheres nos espaços públicos, em narrações a partir de imagens extraídas do sistema da Google (Figura 3).
Instigava-nos uma montagem cinematográfica que realçasse o problema da cartografia dominante, que, historicamente, destacava instrumentos normativos de conduta das formas de experimentar os espaços. A ideia de navegar pelos espaços físicos, àquela altura, limitava-se a ocorrer pelos espaços virtuais. O vídeo, desse modo, inicia-se com uma tela preta e, à frente, o seguinte trecho de Los cosmonautas de la autopista, de Júlio Cortázar e Carol Dunlop (2007):
En general no es el momento de trabajar, o lo es pero puede esperar, razón por la cual nos sentimos vivir con esa intensidad que sólo puede dar el hecho de no estar haciendo nada, sensación cada día más ignorada en la vida corriente, y cuyas consecuencias los entendidos envasan en una breve pero ominosa palabra, stress (p. 118).
Critica-se, primeiramente, o lugar do “não fazer nada” ou a impossibilidade de estar em casa sem nada a fazer, limitando as experiências, em boa medida, às de trabalho (home office). Em seguida, o vídeo continua numa tela do Google Search (busca) sobre o significado da palavra “navegar”, intercalando-se à narração do texto a seguir com imagens do Maps, Earth, Search, Youtube e instrumentos que propõem experiências de estar em lugares de dentro, por meio de câmeras de 360º. O texto de nossa autoria narrado é:
Navegar pressupõe ir num rumo que não se sabe, mas se quer ir. Sair de si, rumo a outros mundos e, talvez, buscar a si mesmo. O que é um corpo quando navega em mares controlados? Navegar pela internet pressupõe uma paradoxal coexistência: ir para onde se é sabido. Códigos, processos, limites, visões, percursos: todos construídos por outros. O que é um roteiro de viagem? Como funciona um roteiro de viagem mediado por outro? Como funcionam os corpos quando não podem navegar? O que podemos esperar de uma cidade sem navegantes? De dentro do carro, a viagem é mais segura. Navegar é preciso. Navegar pressupõe ir num rumo que não se sabe, mas se quer ir.
Alguns elementos observados na obra de Ernesto de Carvalho (2016) e Simon Weckert (2020) também aparecem ali: ironia, dúvida e negação. E isso também se segue por meio da segunda proposta fílmica com essa característica cartográfica: MM2 – Mapas-movimentos 2: Rodovia Transamazônica, Medicilândia, PA (Teixeira Ramos, 2021b) –com a nomenclatura (MM) que faz parte de uma série de outros vídeos realizados coletivamente ainda no âmbito do doutoramento cujo título é semelhante–, partindo de uma ideia ainda mais inserida no sistema da Google, em aproximações críticas a vias brasileiras.
Por ser elemento de um conjunto de filmes com características análogas e tensionamentos contextuais, MM2 – Mapas-movimentos 2: Rodovia Transamazônica, Medicilândia, PA (Teixeira Ramos, 2021b) parece alcançar outro nível no que diz respeito à utilização de linguagens que já apareciam em Navegares Imprecisos (Teixeira Ramos, 2021a): a tensão dos mapas e a narração crítica. No entanto, aponta novos elementos, saindo de um território mais genérico para uma agudização da especificidade das posições.
O filme as demarca na constituição da BR-230 – Rodovia Transamazônica, e o pensamento cartográfico por trás da captura de tela se utiliza da visualização superior, pelo Maps e da visão interna da via, pelo Street View. Por meio delas, exibem-se 80 quilômetros de rodovia, entre a saída sudoeste de Altamira até o raio de dois quilômetros, em torno da antiga Usina Abraham Lincoln, em Medicilândia. Em áudio, há narrações oficiais de quando a via foi inaugurada, bem como ambientações de estradas, a partir de livre captura (Figura 4).
O assunto do vídeo discorre sobre a Rodovia Transamazônica concentrar circunstâncias paradoxais: desde o nome da cidade estudada, Medicilândia, criada no contexto do governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), em meio à Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), às conhecidas situações locais, como o fato de estar nela inserida Altamira, maior município brasileiro em extensão geográfica; e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (2011) [4], na Bacia do Rio Xingu. As vias são conectadas pela saída sudoeste, que, ainda em Altamira, tornam-se uma via cujo nome de um conhecido político local e nacionalmente, para, por fim, tornar-se a Rodovia Transamazônica.
Ao longo de alguns minutos na rodovia, acelera-se o vídeo para vencer a quilometragem de uma cidade a outra, demonstrando-se a precariedade da infraestrutura viária, contrastada com áudios oficiais sobre a imponente inauguração do Projeto Agroindustrial Canavieiro Abraham Lincoln (Pacal), em 1971, que prometia garantir empregos na região. Neste projeto, consistia como principal instrumento de propaganda do governo Médici, em 1973, a usina de cana-de-açúcar Abraham Lincoln, localizada no km 92, em Medicilândia. Logo após sua inauguração, a usina não deu lucros e foi vendida para uma empresa privada. Posteriormente, ela entrou em falência e acabou por devolver a usina à União, em nome do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), transformando-se em ruína, registrada pelo Street View e inserida ao final do vídeo.
De aspectos mais genéricos presentes em Navegares Imprecisos (Teixeira Ramos, 2021a), a especificidades e elementos próprios do locai em MM2 – Mapas-movimentos 2: Rodovia Transamazônica, Medicilândia, PA (Teixeira Ramos, 2021b), alcançamos E(x)squadrinhado (Teixeira Ramos, 2022), em que as questões sobre o modo de intervir moderno-colonial invade a tela pela lógica dos esquadros (Figura 5). O texto de nossa autoria narrado de fundo é:
Esquadrinhado. Esqua-dri-nha-do. Esqua-drinhado. Que é que deu para o mundo se espremer em quadros? Que é que deu para o espaço espúrio ser encolhido e esticado? Seria a mão do artista no quadro do homem quadriculado? Seria a mão do urbanista na quadra, no quarteirão, no quadrante?
Daqui de dentro, vejo a tentativa de esquadrinhar o que não se encolhe. Daqui de fora, vejo a tentativa de esquadrinhar o que se estica. Metragem quadrada dos colonos aos modernos.
Colonialidade. Modernidade. Colono-modernos; a moda da coroa. A coroa quadrada. Superquadra. Quadra robusta, imponente, quadra. Seria a cidade uma quadra, uma quadrilha, uma quadra de quadras, requadrada, desquadrada, desenquadrada?
Esquadrinhado. Esqua-drinhado. Que é que deu para o mundo se espremer em quadros? Que é que deu para o espaço espúrio ser encolhido e esticado?
A estratégia fílmica contém mais perguntas, ironias e outras referências que não somente as das cartografias da Google. Há telas: de mosquiteiro, televisivas, de capturas de telas, de capturas de capturas. Mais do que uma metalinguagem, intenta-se também a produção de meta-cartografias, a fim de mostrar a lógica do esquadrinhamento como presente no ato de pensar ocidental. No entanto, ao levantar perguntas, tensiona, ainda, movimentos, direcionando para um modo de fazer cinema que visa ser mais processo que produto; mais posições conectadas, mas, também, desconectadas.
O encontro dessas três realizações, espaçadas pelo tempo, tem nos mostrado um esboço possível de um cinema-cartografia. Um cinema que indica a constituição pelo movimento, que irrompe, incomoda, duvida e inquieta. Temos pensado que ele acontece não por um gesto, mas por uma relação: mapear-filmar-pensar-escrever. Mapear o problema; pensar o problema; filmar o problema; escrever o problema.
Nesse sentido, a relação mapear-filmar-pensar-escrever é uma primeira tentativa de síntese de um processo inconsciente e de fluxo de pensamento. Em E(x)squadrinhado (Teixeira Ramos, 2022), ele parece ter se materializado de modo mais evidente, mas indicamos serem mais esboços do que ainda uma sistematização sobre o tema. O gesto de olhar para a tela de mosquiteiro, tendo, de fundo, a paisagem da pacata cidade de Goiás, destacando o esquadrinhamento do mundo, em boa medida, decorre das afecções que aquela tela também provoca.
Recorre-nos a quando Gilles Deleuze e Félix Guttari (1992) citam Cézanne: “o homem ausente, mas inteiro na paisagem” (p. 219), indicando estar o percepto na paisagem, mas também que ela contém o homem, no caso, o olhar da captura do vídeo, misturando-se homem e paisagem. E ainda quando afirmam: “A paisagem vê” (Idem) tal qual outrora Paul Klee também afirmara “agora os objetos me percebem” (apud Virilio, 1993, p. 197).
O corte para cenas provenientes da inauguração e do partido urbanístico da construção de Brasília, e sua fundação no planalto central, funcionam como modulações de uma lógica colonial. A tela de mosquiteiro se mistura à imagem do Street View no eixo monumental de Brasília: a tela sobre o eixo, mais uma meta-cartografia. Questionam a cidade esquadrinhada, mas também convoca à pergunta: é possível fazer cidades desde o Sul global por uma perspectiva crítica ao colono-modernismo?
Desse modo, podemos afirmar que o ato de mapear ocorre conectando tela-paisagem-eixo-cidade por meio de olhar homem-câmera. Mapear-filmar, em suma, é um modo de realizar uma operação bastante aproximada sobre o papel do filósofo, que Deleuze outrora afirmou de gerar problemas. Podem ser cortes móveis porque conduzem o ato de pensar sem, necessariamente, produzirem pensamento (Deleuze, 1992).
Não se propõem fechamentos, mas aberturas: imagina-se o que pode vir a ser. Numa associação em linha do tempo, a voz de fundo pode ser uma ligação, muito embora a imagem também o seja. Mas, se o filme é a construção de um discurso sobre o mundo e o mapa também, possivelmente, um cinema-cartografia trata de um mundo discursivo; e, quando tratamos de nossa posição às periferias do mundo, trata-se de um mundo que esbraveja porque deseja ser ouvido e visto ■
REFERENCIAS
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NOTAS
1. No original, “A map underlines what a film is and what it does, but it also opens a rift or brings into view a site where a critical and productively interpretive relation with the film can begin”.
2. Na língua portuguesa, “esquadrinhado” tem como sinônimos mais comuns: estudar, pesquisar com cuidado, sondar, escrutinar, indagar, prescrutar, o que remonta à ideia de precisão por trás da palavra. Neste texto, utilizamos a palavra efetivamente como adjetivo de algo que foi realizado com esquadros.
3. Tal investigação culminou na tese-site-cartografia mapasmovimentos.com. Acesso em 29/04/2022.
4. A Usina de Belo Monte tem seus estudos iniciados em 1975 e sempre foi alvo de críticas de ambientalistas devido ao impacto da obra. Após muitas disputas travadas, em 2010, a Usina foi concedida. (Cf.: Norte Energia. UHE Belo Monte: histórico. Disponível em: https://www.norteenergiasa.com.br/pt-br/uhe-belo-monte/historico. Acesso em 26/04/2022).
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Teixeira Ramos, G. (Noviembre de 2022 – Abril de 2023). Esboços para um cinema-cartografia desde o sul global. [En línea]. AREA, 29(1). Recuperado de https://www.area.fadu.uba.ar/area-2901/teixeira-ramos2901/