Coletivos urbanos feministas. Ações insurgentes para uma cidade cuidadora


Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Resumo

O marco teórico que sustenta o estudo demonstra claras evidências sobre crescimento dos coletivos feministas como força política e movimento que invoca um planejamento com perspectiva de gênero. Essa conjuntura de grandes expectativas por transformação social nas cidades se vê atravessada por uma realidade desigual de direitos, bem-estar e benefícios, em que o acesso aos bens urbanos afeta de forma significativa às mulheres. A pergunta que tem guiado a investigação se volta a atuação dos coletivos feministas nas cidades: como esse movimento de atuação dos coletivos feministas poderia apontar para integração ou criação de políticas públicas urbanas com perspectiva de gênero? O surgimento de novas experiências de resistências multiplicadoras pretende questionar os modelos de planejamento impostos e ampliar a reflexão sobre futuros urbanos alternativos na contemporaneidade. Como resultado do trabalho, apresentamos exemplos de atuações de coletivos feministas.

Palavras-Chave
Coletivos urbanos, Urbanismo feminista, Política pública

Recebido
30 de setembro de 2023
Aceito
30 de dezembro de 2023

Introdução

A materialidade do espaço público e urbano se dá a partir do sistema de opressão-exploração patriarcal e androcêntrico, o que repercute na desigualdade de gênero no acesso à cidade (Veleda Da Silva, 2013). A ordem patriarcal se manifesta em diversas camadas do espaço público e no planejamento urbano. Investigamos como os coletivos feministas vêm atravessando os desafios dessa estrutura de poder baseada na ideologia de dominação, exploração e violência. A partir de que ações as mulheres vêm traduzindo experiências e dizendo sobre seus lugares e demandas efetivas para a construção de uma cidade menos desigual? A partir de que formas de ativismo na cidade, ações em rede e pautas urbanas, os coletivos feministas atuam e transformam o status quo?

O estudo sobre a atuação dos coletivos como modos alternativos de fazer arquitetura e urbanismo se atenta para a dimensão política das ações. A atuação como ação política e alternativa é aquela que pode ser reconhecida por sua capacidade de romper com processos de “cercamento” operados pelo sistema capitalista (Federici, 2017).

De origem insurgente, os coletivos são grupos autogestionados que se mobilizam em rede e se opõem ao poder estabelecido pelo neoliberalismo no qual transforma a cidade em mercadoria. Tal fenômeno se intensifica no início do século XXI (Maziviero e Almeida, 2017; Caron e Costa, 2020).  Os coletivos e suas associações reivindicam a produção do espaço urbano em oposição ao sistema dominante, que impõe a divisão do trabalho, a separação entre espaço público e privado, e o uso do tempo em favor da produção capitalista. (Caron e Costa, 2020).

Desvinculados de instituições, os coletivos se associam em busca de novas formas de organização que contemplem direitos urbanos e humanos (Dardot e Laval, 2017).  Caracterizam-se como grupos autônomos, que permitem trocas horizontais, cujas ações criativas (artísticas ou não) são territorializadas a partir do e no espaço urbano, empregando linguagens multidisciplinares e participativas que promovam a emancipação das populações envolvidas (Caron e Costa, 2020). Assim, aparecem como novas formas associativas (Lima, 2015, p. 42) e de atuação no espaço público e urbano.

A discussão sobre a atuação dos coletivos urbanos e as críticas contemporâneas à epistemologia hegemônica, ao ser pautada pela necessidade de uma visão interseccional, nos leva a analisar a urbanização e espacialidade de ações de base sob recorte de gênero e foco na atuação das mulheres nos espaços públicos. A vivência da mulher no espaço público nos orienta a alguns questionamentos. Como as práticas projetuais feministas e femininas ativam os territórios? A partir de que ações os coletivos feministas tendem a ampliar o direito à cidade para todos? Quais são suas táticas, estratégias e instrumentos?

Desse modo, a fim de aprofundar sobre as atuações dos coletivos feministas nos espaços públicos e como elas vêm se espacializando pelas cidades, as sessões do trabalho foram subdivididas em: definições, antecedentes, características, composições de atores, motivações dos grupos e atuações de coletivos feministas na América Latina. A princípio, o recorte espacial de análise das atuações é a América Latina por uma onda de levantes que provocaram mudanças no movimento feminista, e que suscitam uma inquietude sobre as fontes e bases de conhecimento no Ocidente (Federici, 2017).

Coletivos Urbanos

Definições

O que são os coletivos urbanos? Busca-se compreender a noção e o conteúdo por trás do conceito de coletivos urbanos com o intuito de aprofundar no entendimento e na diferenciação das atuações políticas de tais grupos autônomos e horizontalizados. Apresenta-se nesta sessão a definição de coletivos urbanos a partir de autores como Maria da Glória Gohn (2010), Carlos Henrique Magalhães Lima (2015) e Jorge Bassani e Ana Elísia da Costa (2020), que trazem estudos diversos sobre os coletivos urbanos e suas práticas de mobilização na perspectiva do ativismo urbano. É importante destacar que o conceito dos coletivos urbanos é discutido de maneira geral, a partir da ótica dos autores e de seus estudos sobre coletivos e movimentos sociais diversos. Portanto, o recorte da cidade feminista aparece ao analisar e exemplificar as atuações dos grupos.

Segundo Bassani (2019), coletivos são grupos autogestionados horizontalmente cujas ações criativas, multidisciplinares, colaborativas e participativas são territorializadas no espaço urbano.

Conforme aponta Gohn (2010, p. 16), as redes de associativismos desses grupos organizam e conscientizam a sociedade apresentando demandas construídas em torno de práticas de pressão ou mobilização. As formas associativas e operativas desses grupos aparecem como cenários de sujeitos em movimento, expressas em ações coletivas com cunho emancipatório e transformador.

Questionamos então, como essas organizações trabalham? O que diferencia essas ações da atuação dos movimentos sociais do século XX?

Para Gohn (2011), há um novo cenário neste milênio: novos tipos de movimentos, novas demandas, novas identidades, novos repertórios. Surgiram novos arranjos na perspectiva da organização popular, tais como a atuação em redes. O fenômeno apresenta movimentos que ultrapassam fronteiras da nação, são transnacionais, mas proliferam com força movimentos com demandas seculares como a terra, para produzir ou para viver seu modo de vida; movimentos identitários, reivindicatórios de direitos culturais que lutam pelas diferenças étnicas, culturais, religiosas, de nacionalidades, entre outras; movimentos comunitários de base; novos movimentos comunitaristas –alguns organizados de cima para baixo, em função de programas e projetos sociais estimulados por políticas sociais; e movimentos ligados à questão urbana–. Segundo a autora, essa nova conjuntura econômica e política tem papel social fundamental para explicar o “cenário associativista” atual. As políticas neoliberais desorganizaram os antigos movimentos e propiciaram arranjos para o surgimento de novos atores, organizados em ONGs, associações e organizações do terceiro setor.

Gohn (2010) define movimentos sociais como aqueles que possuem identidade, têm opositor e articulam ou fundamentam-se em um projeto de vida e de sociedade. Além disso, contribuem para organização e conscientização da sociedade; apresentam conjuntos de demandas via práticas de pressão/mobilização; têm certa continuidade e permanência.

Na atualidade, apresentam um ideário civilizatório que coloca como horizonte a construção de uma sociedade democrática. Segundo Gohn (2011), os movimentos sociais são as ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas da população se organizar e expressar suas demandas. A ação concreta adota estratégias distintas para pressionar a ordem estabelecida, desde a denúncia até a pressão, que pode ser de forma direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.) ou indireta.

Atualmente, os movimentos sociais atuam por meio de redes sociais em diversas escalas, desde a escala local à global, sendo a internet um importante fator para o agir comunicativo, para a criação e desenvolvimento de novos saberes. Atuando em redes, os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem propostas e ações coletivas que agem como resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem atores da sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para essa atuação em rede.

Segundo Manuel Castells (2005, p. 20), a sociedade em rede, em termos simples, “é uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação fundamentadas na microeletrônica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir de conhecimento acumulado nos nós dessas redes”. O autor traz a perspectiva da sociedade em rede e sua relação com a comunicação midiática enquanto sistemas que criam relacionamentos entre instituições e organizações da sociedade e que são capazes de formar pontos de vista através do processamento de informações e dos sinais da sociedade no seu conjunto (Castells, 2005, p. 23). Os atores da interação são vistos como receptores coletivos de informação, mesmo quando a informação final é processada por cada indivíduo de acordo com as suas próprias características pessoais. Nesse sentido, a sociedade em rede é a sociedade de indivíduos em rede. É por isso que a estrutura e a dinâmica da comunicação social são essenciais na formação da consciência e da opinião, e a base do processo de decisão política.

Ainda segundo Gohn (2010), houve uma mudança de paradigma visto na redefinição da própria identidade e na qualificação do tipo de suas ações. Esta mudança de paradigma se revela no enfoque dado aos vínculos de integração com esferas da sociedade, organizadas segundo critérios de cor, raça, gênero, habilidades e capacidades, bem como de conscientização e geração de saberes.

Hoje em dia, suas ações lutam contra a exclusão, por novas culturas políticas de inclusão; lutam pelo reconhecimento da diversidade cultural levando em conta que questões como a diferença e a multiculturalidade têm sido incorporadas para a construção da própria identidade dos sujeitos. Há neles uma luta por justiça social e autonomia do sujeito, não individual, mas autonomia do sujeito social, coletivo, de inserção na sociedade. Nesse contexto, os movimentos sociais da atualidade tematizam e redefinem a esfera pública, realizam parcerias com outras entidades da sociedade civil e política, têm grande poder de controle social e constroem modelos de inovações sociais.

Conforme aponta a autora, o que define e se altera nas organizações deste milênio se dá na ampliação dos sujeitos coletivos e de suas redes associativas por efeito das tecnologias de comunicação (Gohn, 2010). Novas mídias e trabalho em rede configuraram alguns padrões de discursos e estratégias destes agrupamentos (Bassani e da Costa, 2020, p. 3).

No século passado, os movimentos –com seu papel universalizante– lutavam pelo “direito a ter direitos” (Gohn, 2010, p. 17). Enquanto, na atualidade, surgem demandas em busca do reconhecimento e respeito às diferenças. O que reflete a ampliação desses movimentos –organizações, articulações, projetos experiências– nas quais as formas de organização e de ativismo desses grupos possuem, na insurgência instaurada, uma reivindicação não negociada sobre a produção e direito à cidade (Bassani e da Costa, 2020):

Os coletivos, em suas perspectivas de ativismo e participação nos processos urbanos, alinham-se a essa plataforma de enunciados, em semântica, na reinvindicação “não negociada” do direito à cidade e, em sintaxe, na insurgência molecular e colaborativa no cotidiano (p. 6).

Segundo Lima (2015), estatisticamente, as ações de coletivos urbanos em si não formam um quadro de lutas muito significativo por não constituírem um território comum de luta para serem considerados como movimentos sociais. No entanto, do ponto de vista qualitativo, esses focos de resistência são capazes de gerar transformações nos contextos em que atuam, ainda que pontuais e de menor alcance.

É importante se atentar para os movimentos que se enquadram na categoria mobilização social –nas perspectivas de participação e cooperação– e sua distinção de outras ações coletivas ou organizações sociais, como as ONGs (Gohn, 2010) ou coletivos, mas que são muitas vezes capturados pelo sistema dominante, com suas estruturas políticas hierárquicas. Além disso, se trata de movimentos e grupos que atuam num cenário contraditório, em que políticas, programas e projetos podem engessá-los. Isso significa que o poder público, ao reconhecer a existência desses novos sujeitos coletivos, vem reconfigurando as suas relações com a sociedade, estabelecendo uma influência política “de cima para baixo”, o que retira dos movimentos o seu caráter político e de pressão (Gohn, 2010). Essa forte influência do Estado sobre a ação coletiva e política dos movimentos é capaz de controlar suas estruturas e transformar suas identidades políticas.

No entanto, as práticas interventoras de coletivos urbanos –na perspectiva do ativismo– colocam em tensão a dimensão cotidiana das cidades. São práticas urbanas contestatórias entendidas como manifestações críticas e resultado das transformações proporcionadas pelos movimentos sociais urbanos (Lima, 2015). Os coletivos de ativistas realizam as práticas contestatórias embasados em ideias e percepções tornadas latentes, por exemplo, por projetos urbanos. Conforme aponta o autor, os coletivos são formados por grupos de pressão e não um movimento social organizado. Portanto, difere-se de um movimento social, mas se trata de uma forma organizada, e contra hegemônica, para exercício político da ação, motivada por questões específicas da cidade.

Quanto à organização, são formados por grupo de participantes bastante reduzidos, e não apresentam correspondência direta entre base social e base de luta, ou seja, o perfil dos membros é diverso do ponto de vista social e econômico. Suas identidades são fluidas e não ficam presas a princípios de disputa muito estáveis. Os recursos tecnológicos e a internet contribuem nessa direção e são importantes instrumentos estratégicos para mobilizar e organizar o movimento e suas ações. No entanto, suas práticas se dão nas ruas. É no espaço público que tomam corpo (Lima, 2015).

Nesse sentido, esta pesquisa propõe uma leitura sobre a prática crítica do urbanismo e o contexto histórico sobre o processo de produção das cidades ao considerar as ações destes sujeitos na construção democrática. Permeia este estudo a necessidade de investigar sobre as ações dos sujeitos na vida urbana –os coletivos urbanos– enquanto sujeitos políticos, que revelam as contradições urbanas nas demandas expressas nas ações coletivas, as quais podem conduzir à construção de políticas públicas ou contribuir para os processos alternativos de planejamento urbano das cidades.

Antecedentes

O que antecede o surgimento dos coletivos urbanos? Que organizações trabalhavam nessa perspectiva do ativismo urbano e da intervenção a partir da apropriação do espaço público?

Diversos autores merecem destaque quando se trata da produção de ideias, no campo do urbanismo, sobre uma nova filosofia política. A literatura originária dos anos sessenta conduz uma aproximação teórica de Marx e das macroestruturas sociais com o cotidiano (como nas obras de Lefebvre, Certeau, Jacobs).

Essa nova filosofia política da década de sessenta, conhecida como O direito à cidade (Lefebvre, 2001) e que ganhou força por seu ideal “libertário” (Bassani, 2019), se caracteriza por questionar a verdade absoluta, ou seja, se desprende de respostas dogmáticas. No entanto, houve uma violenta repressão política e comportamental nas duas décadas seguintes decorrentes de grandes crises na economia mundial. O cenário “libertário” com afeição às práticas coletivas e alternativas dá lugar ao consumo com a emergência das ideais e práticas neoliberais a partir da década de oitenta. Essa ideologia dominante da época, ligada às posições neoliberais, trouxe a ideia de emancipação; sendo assim, o ideal moderno e de expansão então se consolida.

Contudo, antes do final do século XX, ainda na década de noventa, contexto em que a noção do consumo e o panorama excludente das cidades já se encontravam instaurados, surge uma nova onda de revoltas urbanas. Movimentos sociais por todo Ocidente voltam-se ao ideal libertário dos anos sessenta (Caron e Costa, 2020, p. 8). Bassani (2019) aponta que dentre os conflitos que marcaram o cenário –no âmbito da vida urbana– está a consolidação da “sociedade de controle” em oposição à herança “libertária” (anos sessenta) que se encontra na ideia do “trabalho coletivo” (anos setenta). Contexto no qual é dada relevância aos grupos de artistas que protagonizavam a cena artística urbana.

No Brasil, a sociedade marcada pelo controle está relacionada à cultura política do regime militar que foi capaz de transformar a permanência no espaço público em uma ameaça à ordem pública, convertendo o encontro de pessoas na rua em um ato subversivo: “em caso de ameaça, a primeira imposição do poder é a interdição à permanência e à reunião na rua” (Lefebvre apud Maziviero e Almeida, 2017).

“O fechamento e o esvaziamento do espaço público, assim, contribuíram para a interrupção do processo de estruturação da construção democrática nas décadas de 1960 e 1970” (Mazivieiro e Almeida, 2017, p. 4). Portanto, desde anos setenta, o Brasil –diante de problemas econômicos– se viu frente ao fortalecimento das reivindicações sociais e ao desenvolvimento de uma variedade de movimentos populares de base. A desigualdade se acentuou em grandes centros urbanos, momento em que houve um intenso processo de favelização.

O período de recessão na economia vinculada à desindustrialização no país resulta no consequente empobrecimento da classe trabalhadora. Assim, a desigualdade espacial aparece como expressão das metrópoles, característica que marca a sociedade brasileira do período. O espaço dual passa a assumir o contraponto entre a cidade formal e informal, garantindo a concentração de investimentos públicos somente na cidade formal e reforçando a ilegalidade urbana da cidade informal, exacerbando as diferenças socioambientais.

Houve nesse período –década de setenta– uma crise de legitimidade do regime, tornando inviável que o governo militar permanecesse no poder. Somente na década de oitenta que se inicia, então, uma nova forma de governar o Brasil a partir de uma nova constituição –de 1988– que estabelece princípios democráticos e que tenta apagar os rastros do regime autoritário em prol dos direitos humanos (Maziviero e Almeida, 2017):

A agregação das lideranças dos movimentos sociais urbanos em prol da luta pela redemocratização na década de 1980 se dá, entretanto, ao mesmo tempo em que o país passava por um acirramento das condições de vida nos grandes aglomerados urbanos (p. 4). 

Assim, nesse cenário em que os movimentos sociais tinham como pauta a luta por melhorias nas condições de vida –principalmente nas periferias– diante o crescente processo de precariedade, de exclusão do acesso à cidade, é que surgem diferentes frentes de luta e reivindicação por formação de espaços públicos atribuídos de urbanidade. Conforme apontam as urbanistas Maria Carolina Maziviero e Eneida de Almeida (2017), a cidadania passa a ser reivindicada ancorada pelos direitos constitucionais de igualdade e participação.

Nos anos noventa, momento em que as associações coletivas começam a despontar, com o neoliberalismo já instaurado, carregado de suas políticas privatistas [estado mínimo], e com o declínio de investimentos em infraestrutura e políticas de atendimento social, acentuam-se ainda mais as transformações no processo produtivo, na organização do trabalho e no espaço construído. Tais transformações representam o estabelecimento da cidade segregada e fragmentada, da qual resulta a desqualificação e abandono do espaço público a partir de mecanismos de controle (Maziviero e Almeida, 2017).

Núcleos privados e homogêneos passam a ser dominantes e assumem a capacidade de subtrair o convívio comum ao segregar a propriedade privada da rua. Ao subtrair os aspectos da sociabilidade urbana, sobretudo a vida pública, se coloca em questão a impossibilidade do encontro com o desconhecido e com a diferença (Sennett, 1999). Essa impossibilidade do encontro com a diferença e permanência no espaço público como uma condição imposta não contribui para o enriquecimento da experiência humana e de suas percepções.

Porém, na década de noventa, novos arranjos participativos retomam a ressignificação dos espaços públicos das grandes cidades brasileiras pelo viés da heterogeneidade e da diferença como forças opostas ao autoritarismo e conservadorismo.

Conforme os estudos sobre coletivos urbanos de Jorge Bassani (2019), o surgimento de grupos de artistas com a ideia de trabalho coletivo é uma condição exponencial nos territórios dominados pelas ditaduras remanescentes do autoritarismo dos anos trinta: América do Sul, Portugal e Espanha.

Segundo Paim (2009), outros agrupamentos de artistas já trabalhavam nessa perspectiva desde o início do século, como os Grupos Dadaístas em Berlim e Zurique (1916); e, sobretudo, a partir dos anos de 1960, como os grupos Fluxus (Alemanha, 1962); Group de Recherche d’Art Visuel – GRAV (Paris, 1960); Art and Language (Estados Unidos e Inglaterra, 1968) ou ainda o Guerrilha Girls, de 1985 (Estados Unidos). Contudo, segundo Hollanda (2013), a partir do final da década de 1990, o espaço urbano torna-se o foco das intervenções dos coletivos (Maziviero e Almeida, 2017, p. 8).

São organizações originalmente insurgentes que retomam as ideias de antes do final do século XX, como a figura do flâneur de Charles Baudelaire, por Walter Benjamin (1975), e as ideias situacionistas de urbanismo relacionadas a situações de “derivas” na cidade, além do direito à cidade de Lefebvre (2001), ao terem a vida urbana afetada pelas políticas neoliberais. Essa busca pelo direito à cidade foi uma das principais motivações do tempo para o surgimento dessas organizações.

Um exemplo clássico é o movimento “Reclaim the Streets” (1995), em Londres. “No mesmo período, na América do Sul e Espanha intensifica-se a cena dos coletivos de arte urbana” (Bassani, 2019):

As ações políticas e culturais voltadas ao enunciado de direito à cidade dos anos 90, ao se aproximar das teorias libertárias, ampliaram e sofisticaram as estratégias dos coletivos artísticos das duas décadas anteriores, alcançaram ressonância na sociedade e projeção midiática fomentada pelas novas mídias digitais (p. 9).

O fenômeno ganha grandes proporções no início dos anos 2000. Segundo o autor, diversos movimentos assumem o nome de “coletivos”, porém com estratégias e discursos distintos. Na Espanha, o cenário se intensifica com os chamados “colectivos espanholes”, formados por arquitetos recentes. No Brasil, o termo espanhol é adotado por grupos que realizam ações urbanas não institucionais e não autorizadas. Conforme o autor aponta, o marco estratégico desses movimentos se dá a partir da ocupação por parte de coletivos de artistas. O fenômeno dos coletivos de Madri torna-se referência no mundo, assim como a Ocupação Prestes Maia, no centro de São Paulo, torna-se referência para outras cidades no Brasil, que marca a primeira década do século XXI. A característica forte de um coletivo atualmente está na apropriação do espaço público a partir de uma ação crítica e da interação humana.

Figura 1
Antecedentes dos coletivos urbanos.
Fonte: elaboração própria.

Características

Quais são as características dos coletivos urbanos? Quais são as estratégias vinculadas às suas ações?

Uma evidente especificidade dos coletivos são suas estratégias associativas e situacionais que se dão a partir da apropriação do espaço público. “Os coletivos se apropriam da cidade opondo-se ao processo de formulação do território a partir da projeção do medo e da violência” (Maziviero e Almeida, 2017, p. 6).

Segundo Lima (2015, p. 42), os coletivos se caracterizam por serem grupos autônomos, desvinculados de instituições e cujas ações (artísticas ou não) tendem a extrapolar as esferas locais. Tais coletivos e suas associações reivindicam a produção do espaço urbano em oposição ao sistema dominante, que impõe a divisão do trabalho, a separação entre espaço público e privado, e o uso do tempo em favor da produção capitalista (Caron e Costa, 2020). Sem vínculos institucionais ou partidários, os coletivos se associam em busca de novas formas de organização que contemplem direitos urbanos e humanos (Dardot e Laval, 2017). 

Jan Gehl (apud Maziviero e Almeida, 2017, p. 6) aponta que os coletivos urbanos se caracterizam a partir de sua organização e espacialização e por meio da apropriação do espaço público. A organização dos grupos acontece de forma anárquica e horizontal, se caracterizando ainda por serem flexíveis e situacionais, comandados por arranjos descentralizados, que se apropriam do espaço público por meio de ações autogeridas e transversais às ações governamentais.

O estudo do arquiteto e urbanista Bassani (2019) coloca em foco a tradição de ação político-artística e o alargamento de novas formas de exercício profissional. Segundo o autor, os coletivos atuam dentro dessa perspectiva, criando a partir da recombinação e da reconfiguração dos códigos vigentes para produzir movimento, escapando às territorialidades. “Atuam por meio de uma adaptação pontual de forma invasiva ou não do espaço público e, partindo do princípio de que a rua representa o espaço de todos, em geral essas ações não pedem autorização ou permissão à prefeitura” (Maziviero e Almeida, 2017, p. 10).

Essas reivindicações ou reprogramação do espaço se dão em pequena escala e buscam respostas flexíveis e reversíveis ou ajustáveis às condições inevitáveis de mudança, tendo em vista que os lugares não são estáticos (Maziviero e Almeida, 2017). Conforme apontam as autoras, as ações de coletivos urbanos surgem como proposições alternativas de usar, olhar, planejar, discutir, habitar e construir a cidade.

Os grupos atuantes –coletivos urbanos– buscam ressignificar os espaços públicos a partir da mobilização, apropriação e da experiência coletiva. Assim, a atuação coletiva se enquadra no contexto de transformação política, e por isso são vistos como sujeitos políticos, associados ao seu contexto histórico. Nesse sentido, as redes de associação formadas por grupos ativistas ressignificam as demandas, enquanto aprendem sobre o mundo e sobre si a partir da própria experiência.

De forma a sintetizar as principais características dos coletivos urbanos, destacamos:

> apropriação do espaço público a partir de estratégias associativas e situacionais;
> grupos autônomos;
> ações autogeridas e escaláveis;
> orma de organização anárquica, horizontal e de mobilização em rede.

Composições de atores

Quem são os atores que compõe os grupos chamados coletivos urbanos?

É considerado um debate importante a diferenciação entre os diversos grupos e atores que formam os coletivos urbanos assim como suas associações. Bassani e da Costa (2020) trata sobre a formação de “coletivos de ativismo urbano e coletivos formados por jovens profissionais”:

Os primeiros propõem a própria cidade e formam redes cooperativas; os segundos, “tentam correr dentro do sistema, entram em concursos, não fazem ‘autopropostas”, argumento esse que, certamente, é um ponto fundamental. Ambos são decorrentes da economia globalizada neoliberal, mas diferem-se absolutamente quanto a discursos e práticas; são fenômenos que se cruzam e que produzem estágios intermediários entre um e outro, o que justifica a necessidade de um exame atento e contínuo (p. 5).

Enquanto os coletivos de ativismo urbano mobilizam ideias, consciência e demandas, os coletivos formados por profissionais podem ser organizados de cima para baixo; ou seja, podem sofrer influência política direta, limitando-se a ações pontuais, de cunho conciliador e não transformador. Enquanto de um lado, atores passam a atuar de forma propositiva nas demandas vivenciadas e apresentadas pela cidade, de outro lado, intervenções urbanas são institucionalizadas quando as municipalidades intervêm para atender reivindicações locais.

Considera-se importante a ressalva de que o foco de investigação do estudo se dá na formação dos coletivos que tem potencial transformador, numa perspectiva ativista, e não conciliadora, a partir de política de base.

Motivações dos grupos

As motivações dos grupos aparecem como a busca pelo direito à cidade que se opõe ao modelo de formulação do território. “Os coletivos urbanos não dirigem suas ações apenas à redistribuição de recursos, mas também a modos de vida que tenham como suporte a liberdade e o reconhecimento” (Lima, 2015, p. 42).

Esses movimentos “não são apenas reativos, movidos só pelas necessidades (fome ou qualquer forma de opressão), pois podem surgir e se desenvolver também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência” (Gohn apud Lima, 2015, p. 42).

Nesse sentido, o recorte do estudo –coletivos feministas– tem enfoque na invisibilidade da experiência e prática das mulheres nas cidades (Tavares, 2015), e sobretudo das contradições vivenciadas no cotidiano, limitando seu direito à cidade (Tavares, Novas e Sarmiento, 2022).

> Após uma análise preliminar das atuações dos coletivos feministas, destacamos as motivações dos grupos:
> reconhecer as desigualdades estruturais da sociedade a partir do projeto urbano e a construção das cidades;
> denunciar a violência estatal, familiar, sexual e institucional;
> reconstruir e reconhecer os aspectos de nossas cidades que reforçam um sistema patriarcal;
> atuar politicamente em busca da transformação das cidades, para que sejam mais justas e inclusivas;
> propor o rompimento do limite entre espaço público e privado, expandindo a esfera do doméstico para o espaço público.

Atuações de coletivos feministas na América Latina

Ativismo feminista e ações de resistência insurgentes

As atuações dos grupos ativistas urbanos são ações contra-hegemônicas que envolvem um conjunto de práticas que se fazem a partir de diversas formas de intervir nas ruas. Suas concepções de cidade são formuladas coletivamente e colocadas em prática nos lugares de forma crítica e reflexiva (Lima, 2015, p. 26).

Os coletivos que disputam espaço na cena política da cidade o fazem a partir do coletivismo (Lima, 2015) ou associativismo (Gohn, 2011). Ambos os termos apresentam a ideia de que a atuação dos grupos é garantida a partir de redes que se associam em torno de práticas que mobilizem propostas para as demandas vivenciadas e apresentadas pela cidade.

Segundo Lima (2015) os coletivos urbanos –pequenos grupos de resistência ativa e não violenta– privilegiam ações culturais e atuam pelos princípios da não-hierarquia e da horizontalidade, de modo a se manterem desvinculados a governos e instituições. O esforço é de forçar uma prática horizontal inseridos em uma realidade de estruturas verticais.

Quanto à forma de atuação nas ruas, esses grupos elegem as práticas de cunho crítico que misturam temas culturais e artísticos às formas de protesto e militância. Promovem ocupações, intervenções, derivas e outras práticas nos espaços públicos como forma de criar elementos contrastantes e reflexivos diante dos conteúdos propostos pelo urbanismo em seu conjunto de práticas. As formas de ocupação nas ruas e apropriação do espaço público representam importante processo de sensibilização e de mobilização social. Por meio delas são articuladas questões que envolvem demandas da população ou mesmo identidades menores e particulares, mas que podem, aos poucos, induzir relações urbanas pela crescente aquisição de consciência política na cidade (Lima, 2015, p. 211).

Pretende-se avançar na discussão teórica sobre a cena de ativismo feminista na América Latina e como ela vem ganhando força e se intensificando. São diversos os coletivos urbanos feministas que compartilham de princípios e práticas contra-hegemônicas nos quais podemos citar: “Mujeres Creando”, “Slam das Minas”, “Vem pra luta amada”, “Habitaria”, “Minas na Pixxta”, “Papel Mulher”, “Terça das Mana”, “Geobrujas”, “Malajunta”, “Nuestras Arquitectas”, “Comadres”, “Carishina en Bici”, “Cicletada de las Niñas” e “Urbanismo Vivo”.

No campo da produção do conhecimento, a interpelação das epistemologias hegemônicas entra como agenda feminista prioritária. A consciência da violência e opressão dos processos colonizadores faz surgir um campo de reflexão com o qual o feminismo passa a dialogar (Williams, 2022).

O coletivo “Mujeres Creando” foi pioneiro, surgiu em La Paz, na Bolívia, com iniciativas desde os anos noventa, momento em que houve um avanço neoliberal na América Latina e naquele momento a esquerda parecia não ser capaz de construir um discurso alternativo efetivo, abraçando um marxismo ortodoxo, pois não reconhecia a mulher como sujeito político. O grupo surge então com objetivo de reivindicar a ortodoxia patriarcal das esquerdas e fazer frente ao discurso de empoderamento neoliberal dos feminismos do Norte Global. O coletivo, formado por três mulheres, sugeriram que as mulheres apropriassem de seus próprios discursos teóricos e ideológicos e que ocupassem o espaço público. Elas adotaram novas formas de comunicação visual criativa que fizeram a diferença. Começaram com uma série de grafites denunciando a violência estatal, familiar, sexual e institucional.

Figura 2
Denuncia a violência institucional em La Paz, Bolívia.
Fonte: Mujeres Creando
https://mujerescreando.org/.

O ativismo do coletivo “Mujeres Creando” é internacionalmente reconhecido, já participou de exposições e bienais de arte.

Os coletivos feministas utilizam de táticas diversas para se apropriarem do espaço público e reivindicarem o direito à cidade, como por exemplo: intervenção artística, plantio de hortas, oficinas, performance poética, caminhadas e mapeamentos coletivos, cozinhas urbanas e ocupação pelo uso da bicicleta.

O grupo cicloativista feminista “Minas na Pixxta” reivindica o direito e acesso à cidade através do uso da bicicleta. Atuam no Rio de Janeiro desde 2019 ocupando as ruas do centro a partir do compartilhamento de vias e realizando intervenções em praças, como por exemplo oficinas de mecânica de bicicleta para mulheres.

As atuações variam de ações pontuais, multimodais e em rede, havendo circuitos semanais, envolvimentos em protestos, manifestações na rua e eventos internacionais e em rede.

O ponto de encontro ocorre na Cinelândia, semanalmente, e são divulgados nas redes sociais pelo grupo. Já a decisão sobre as rotas semanais é composta pelas mulheres presentes no local.

Figura 3
Cicloativismo no Rio de Janeiro, Brasil.
Fonte: Minas na Pixxta https://www.instagram.com/minasnapixxta/.

O coletivo “Urbanismo Vivo” vem atuando em Buenos Aires, na Argentina, desde 2012. O grupo tem como principal objetivo promover uma cidade mais humana em trabalho colaborativo como motor de transformação em diversas escalas.

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Caminhadas urbanas em Buenos Aires, Argentina.
Fonte: Urbanismo vivo.
https://urbanismovivo.com.ar/.

São realizadas caminhadas urbanas como uma ferramenta para transformar nossa percepção de ideias sobre nosso entorno. O grupo faz parte de um movimento mundial chamado “Jane’s Walk”, que realiza um festival de caminhadas por ano, de forma aberta, gratuita e organizada de maneira colaborativa.

O festival se inspira em Jane Jacobs, ativista urbana pioneira no movimento de cidades para as pessoas. Esse movimento de caminhadas urbanas chamado “Jane’s Walk” acontece em mais de 44 países do mundo, em mais de 400 cidades.

O coletivo “Urbanismo Vivo”, desde sua implementação local, na cidade de Buenos Aires, no ano de 2012, já realizou nove festivais e quase setenta caminhadas urbanas com mais de 2.700 participantes. O festival propõe utilizar uma ferramenta familiar como o caminhar, porém de maneira disruptiva.

No site mantido em funcionamento para divulgação das atuações, elas são descritas conforme se segue:

Caminhamos para compartilhar histórias sobre os bairros, encontrar novos relatos, descobrir aspectos das comunidades, encontrarmos, conhecermos, ativarmos em coletivo. Caminhamos porque o ritmo e as pausas nos convidam a pensar por uma perspectiva mais humana e amável. Caminhar é um convite a se colocar entre o individual e o coletivo buscando diversidade em conjunto para pensar em tudo aquilo que temos em comum. É um meio que nos questiona sobre a maneira de vivermos juntos. Implica questionar, experimentar e transformar a partir de novas formas de nos encontrarmos. caminhar se tona uma ferramenta a partir da qual visibilizamos, conectamos, aprendemos e resistimos (Urbanismo vivo, 2023, nossa tradução).

Durante a semana de Placemaking Latinoamérica 2019, realizado em Lima, no Peru, em colaboração com “Ocupa tu calle”, o coletivo “Urbanismo Vivo” participou de uma oficina com o tema: Urbanismo e Feminismo, construção dinâmica da cidade. Para realização da oficina, o grupo abordou a perspectiva do urbanismo feminista no qual propõe uma mudança de prioridades para pensar a cidade e colocar as pessoas no centro das decisões urbanas.

O ponto de partida foi reconhecer as desigualdades estruturais da sociedade desde o desenho urbano e a construção das cidades.

Fotografia 2
Oficina no Placemaking Latinoamérica 2019 em Lima, Peru.
Fonte: Urbanismo vivo.
https://urbanismovivo.com.ar/.

Em forma de encontros, as oficinas foram realizadas em cidades latino-americanas como por exemplo Cidade do México, Buenos Aires e Lima, onde o objetivo se deu em reconstruir e reconhecer os aspectos de nossas cidades que reforçam um sistema patriarcal para desnaturalizar práticas em busca de uma transformação das cidades para que sejam mais justas e inclusivas. A oficina realizada na Cidade do México, em colaboração com “Lugares Públicos”, teve como tema: “Triangulação – conexão dos cidadãos no espaço público”. Em Buenos Aires, na Argentina, “La Ciudad que Resiste” foi a colaboradora para a realização da oficina com o tema: “Reconhecimento e reconstrução de aspectos que reforçam as cidades patriarcais”.

O grupo feminista “Coletiva Habitaria” realiza ensaios práticos nos espaços públicos de como imaginar e desenhar cozinhas urbanas. Interessa-lhes colocar em prática um manifesto político de subverter o uso privado da cozinha como elemento doméstico que tem potencial transformador, capaz de propor o rompimento entre as relações público e privado.

O grupo questiona a ideia de cozinha sempre fixa e imóvel, e vêm intervindo com alternativas em espaços públicos, como elemento dinâmico, coletivo e comunitário.

Atuando em Córdoba, na Argentina, desde 2019, são realizadas ações performáticas que nos convidam a repensar e ressignificar o espaço, abrindo possibilidades de expandir a esfera do doméstico, para além dos limites preestabelecidos e gerando encontros comunitários nos distintos fragmentos da cidade.

Figura 4
Acima: cozinhas urbanas em Córdoba, Argentina.
Fonte: Coletiva Habitaria
https://www.instagram.com/colectiva.habitaria/.
Figura 5
Abaixo: ações performáticas em Córdoba, Argentina.
Fonte: Coletiva Habitaria
https://www.instagram.com/colectiva.habitaria/.

Para citar outros exemplos: o grupo “Papel Mulher” realiza intervenções artísticas com lambes pelas ruas de diversas cidades do Brasil; o coletivo “Vem pra luta amada” realiza oficinas de serigrafia nos espaços públicos do Rio; o coletivo “Slam das Minas”, atuando desde 2016, é conhecido por suas batalhas poéticas e outras intervenções nos espaços públicos em redes de cidades.

A partir do aprofundamento das iniciativas dos coletivos feministas e do envolvimento das questões ligadas a América Latina, questionamos: como os grupos imprimem suas ações a partir da perspectiva de gênero? O que move o feminismo latino-americano e qual a ponte que conecta as várias iniciativas dos coletivos? De acordo com Erica L. Williams (2020), o feminismo latino-americano introduziu a articulação sexo/gênero/raça nos estudos sobre o efeito do sistema patriarcal instaurado nas cidades, denunciando a ideologia que se ancora na violência e na violação dos direitos das mulheres.

Nesse sentido, a iniciativa/ atuação dos grupos, por mais diversas e territorialmente variadas, têm questões que se articulam à perspectiva de gênero proposta pelo feminismo latino-americano, como por exemplo o reconhecimento das desigualdades estruturais na concepção e construção das cidades ao denunciar a violência e a violação dos direitos visando reconstruir os aspectos que reforçam esse sistema patriarcal.

Considerações finais

O ativismo, visto como um tipo de ação crítica diante de uma situação, carrega em si a possibilidade de alargar os horizontes políticos da interação humana (Lima, 2015). As atuações dos coletivos feministas que venho investigando disputam espaço entre as ordens hegemônicas, ordens estas que agem a partir do poder de planificar a experiência urbana. São forças hegemônicas que tentam impor sentido único e comum para a cidade, mesmo diante da ideia de que os conflitos e dissensos constituem a sua própria essência.

Nesse sentido, os espaços públicos são objeto de ação, como lugar do exercício político para os coletivos urbanos atuarem e reivindicarem o direito à cidade. Potencialmente é na rua onde se mediam as diferenças e, para os ativistas, onde se pode vislumbrar a transformação para as cidades, sendo espaço de disputa e confronto. No repertório de atuações foram identificadas ocupações, intervenções e manifestações além da diversidade de pautas relacionadas aos aspectos da vida urbana com perspectiva de gênero. São diversas as reivindicações realizadas por grupos formados por mulheres, ativistas e feministas urbanas, que denunciam as contradições do acesso à cidade e aos bens urbanos em intervenções de diversas naturezas, em princípios de planejamento, leis urbanísticas, decretos governamentais etc.

Observamos que a forma auto-organizacional dos grupos e a atuação pautada nas lutas urbanas vem priorizando a gestão colaborativa e horizontalizada como princípios, independentes da relação com o Estado. Sendo assim, a horizontalidade é um princípio compartilhado por esses grupos, que rejeitam hierarquias e acreditam na autonomia e tomada de decisão como meio de emancipação ■


REFERENCIAS

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  • Lefebvre, Henri (2001). O direito à cidade. São Paulo: Centauro.
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  • Tavares, Rossana Brandão (2015). Indiferença à diferença: espaços urbanos de resistência na perspectiva das desigualdades de gênero. (Programa de Pós-Graduação em Urbanismo – Mestrado e Doutorado). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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  • Veleda Da Silva, Susana Maria (2013). A contribuição dos estudos de gênero para a compreensão da geografia do trabalho: uma pauta para discussão. Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero, 4(2), 106-117.
  • Williams, Erica L. (2022). Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Heloísa Buarque de Hollanda, editor. Hypatia, p. 1-5. [Book Review].

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INFORMACIÓN PARA CITAR ESTE ARTÍCULO:

Resende Ferraz, Carolina y Sansão Fontes, Adriana (Noviembre 2023 – Abril 2024). Coletivos urbanos feministas. Ações insurgentes para uma cidade cuidadora. [En línea]. AREA, 30(1). https://www.area.fadu.uba.ar/area-3001/ferraz_sansao3001/

Arquiteta e doutoranda em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB-FAU/UFRJ), com bolsa de estudos da CAPES. Mestra em Design pela Universidade de Brasília (PPG-DESIGN/UnB). Graduada em Arquitetura e Urbanismo (UniCEUB), com período Sanduíche na Universidade Politécnica da Catalunha – Barcelona, com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Atualmente é pesquisadora integrante do Laboratório de Intervenções Temporárias e Urbanismo Tático (LabIT-PROURB-FAU/UFRJ).
Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo cum laude pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado e doutorado em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB-FAU/UFRJ), com período sanduíche na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona – ETSAB/UPC. Pós-doutorado (Professora Visitante Júnior) na ETSAB/UPC, Barcelona, com bolsa da CAPES-Print. Atualmente é Professora Associada 2 da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde leciona no Ateliê Integrado 2, e Docente Permanente do PROURB – Programa de Pós-graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ, onde exerce a função de Vice-coordenadora. É membro das Redes Placemaking Latinoamérica, Placemaking Brasil, PlacemakingX, CivicWise, Rede de Professores Universitários pelas Ruas Completas e Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo.