Entre redes de comunicação e socialização do saber. Projeções territoriais para uma universidade pública brasileira


Universidade Federal de Santa Catarina
Laboratório de Ecologia Urbana

Resumo

Sedimentado sob intercâmbios com a estrutura político-pedagógica do Norte Global, o território universitário brasileiro possui subestimados potenciais de socialização do conhecimento e enfrentamento à crise climática. Através de experimentações visuais aplicadas ao contexto do Campus Trindade da UFSC, este artigo busca interseções entre o papel do espaço físico da universidade – como estruturas de transmissão do saber – com as tipologias de rede de comunicação, teorizadas por Paul Baran em 1964. Identifica-se nos diagramas uma latente disposição nas interações acadêmicas para atingir a resiliência de uma rede infraestrutural bem distribuída, ainda eclipsada pelos escassos recursos que distanciam universidade e sociedade.

Palavras-chave
Campus universitário, Redes de comunicação, Espaço público

Recebido
30 de abril de 2022
Aceito
12 de fevereiro de 2023

Introdução

Escrevendo em 1964, Paul Baran principia algumas das bases da concepção do que conhecemos da rede mundial de computadores. O momento fundador de parte das tecnologias de informação, comunicação e mapeamento hoje utilizadas trazia consigo imperativos de segurança, vigilância e poder político. Ao propor uma ordem distributiva de pontos interconectados, a obra não lançou apenas as bases dos sistemas que orientam o uso de dispositivos móveis e de muitos dos sistemas de comunicação que utilizamos hoje; propiciou uma nova maneira de interpretar e assegurar relações espaciais de conectividade. O clima de conspiração ininterrupta entre dois blocos econômicos deixava em destaque a necessidade de proteção de equipamentos de comunicação e das redes que poderiam prever e, em casos últimos, orientar reações aos conflitos (Baran, 1964). Afora dos apontamentos técnicos trazidos à luz pelo esquema proposto pelo engenheiro, há valiosas lições territoriais. Se, no contexto pós-guerra, importava a proteção das infraestruturas como maneira de assegurar a sobrevivência em uma relação polarizada entre duas ideias de mundo, nos desafios de hoje, o próprio entendimento sobre a existência no planeta se coloca em relevo (Crutzen e Stoermer, 2000; Latour, 2018; Tsing, Swanson, Gan e Bubandt, 2017).

Sob esforços que vêm desde antes da Conferência de Estocolmo, alertas para amenizar ou evitar uma catástrofe global não foram suficientes na formulação de políticas e investimentos públicos e, como “a ideia de um destino comum da humanidade não conseguiu se impor ainda, as vias da indispensável cooperação permanecem bloqueadas” (Dardot e Laval, 2014, p. 24). As ramificações da crise ecológica suscitam a atenção do Norte Global a investimentos avultados em infraestruturas como parte da proteção contra eventos climáticos extremos, frequentemente propalados em discursos midiáticos e políticos progressistas que amparam e justificam iniciativas locais focalizadas nessas temáticas. No caso da maioria dos países do Sul Global, a disponibilidade de recursos financeiros e a austeridade econômica que os governos têm aplicado somam-se aos empecilhos já colocados pelas crises econômicas e ambientais que assolam os assentamentos humanos e as dinâmicas sociais.

Sabe-se que infraestruturas urbanas bem articuladas são decisivas para a efetividade de políticas que reconheçam as conexões entre a vulnerabilidade ambiental e social, garantindo uma qualidade de vida justa e equitativa (Anguelovski et al., 2016; Haase et al., 2017). Consideramos, contudo, que apenas as intervenções espaciais não darão conta das mudanças climáticas e do trabalho com as suas consequências, ou seja, há transformações posturais e epistemológicas necessárias. Com isso em mente, voltamos nosso olhar aos espaços de produção formal do conhecimento e, mais especificamente, o território das universidades públicas como laboratório de comportamentos sociais ecologizados. As disparidades nos investimentos nos oferecem apontamentos acerca da necessidade de repensar as próprias dinâmicas urbanas e de nos capacitar para melhor gerir a infraestrutura que temos à disposição e a que carecemos. Substancialmente, há demanda acumulada para explorações visuais dessas contingências e possibilidades, ou seja, trata-se de atrelar relações de poder e de visão.

Entre as diversas investigações acerca da tipologia “campus”, e trabalhando com as intersecções do território universitário com as temáticas ecológicas e suas implicações sociotécnicas no sistema de espaços públicos, utilizamos como objeto de estudo a sede da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),  indicado também como Campus Trindade, na cidade de Florianópolis/SC, Brasil. Através de ensaios, o presente artigo tem como principal objetivo trazer à luz algumas das redes de sociabilidades que transformam um campus universitário brasileiro em um dispositivo espacial de expressão e informação, vetor do pensamento sistêmico e complexo. A partir de diagramas visuais, o artigo visa ainda extrair subsídios teóricos para uma argumentação que interceda em favor das relações humanas e dos cuidados ecológicos nas áreas livres do campus. A proposta de partida está amparada nas proposições de Baran (1964) e como seus conceitos auxiliam na representação das dinâmicas sociais do campus em diferentes momentos históricos da instituição. Sob uma abordagem metodológica mais recente, a visualização dos dados de conexões à rede wifi e das variáveis do “well-designed campus” (Hajrasouliha, 2017) ampliam as análises e contribuem para a avaliação prática da distribuição das redes de sociabilidade do campus. Está subjacente a sensibilização do trabalho com ferramental digital múltiplo, sejam dados digitais brutos ou propostas baseadas em investigações espaciais mais subjetivas, como maneira crítica de repensar o papel do território universitário a partir dessas fronteiras.

Moldes e modelos do território universitário

Apesar de muito sedimentado, o distanciamento entre a sociedade civil e o aprendizado nos territórios universitários não é algo que sempre ocorreu. A cultura do debate público e o direito ao ensino em qualquer lugar, conhecidos na sociedade medieval como disputatio e ius ubique docendi, tornavam imprecisa a demarcação territorial entre o que era ensino e o que era aprendizagem. Mesmo que incipiente enquanto organização institucional unificada, os territórios universitários e as redes de comunicação exerceram forte influência na divulgação e na construção da esfera pública, refletida na democratização das práticas do ensino. As comunidades de ensino abertas, chamadas de studium, compunham o cerne espacial da universalidade do saber, replicados nos demais processos de transmissão do conhecimento (Pinto e Buffa, 2009; Van der Zwaan, 2017). Da ruptura com a configuração medieval, esses territórios foram alterados e influenciados por uma nova estrutura pedagógica, fragmentada em espacialidades e especialidades que não orientavam somente os espaços acadêmicos, mas a relação de poder unilateral entre quem ensina, possuidor do conhecimento, e quem aprende (Verger, 1990). Essas práticas, em certo sentido, conformam os primeiros moldes do que é reconhecido mundialmente hoje por campus universitário.

A implantação das universidades brasileiras, nas suas características espaciais e organizacionais, teve conexões claras com os modelos desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos. Embora não seja o objetivo esgotar essa investigação histórica acerca das fórmulas espaciais de campus, essas conexões com modelos externos não significam que os territórios do ensino superior brasileiro tenham sido herméticos às teorias e formulações nacionais. Pelo contrário, a própria prática de projeto desses espaços assume um caráter inovador no país e, internamente, comunica-se com o cenário latino-americano. A aproximação entre os governos locais e o norte-americano, que visava alcançar uma hegemonia econômica na região sul do continente, sentiu-se em termos político-culturais em diversos domínios.

No Brasil, as influências externas prevaleciam conforme o contexto político e mesmo a disponibilidade de recursos, no que se pode destacar a intensa comunicação com grupos técnicos norte-americanos, mediante os acordos do Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID), nas décadas de 1960 e 1970, o primeiro deles firmado pouco mais de um ano depois do golpe militar (Vechia e Gomes Ferreira, 2020). Especialmente através do Plano de Rudolph Atcon, foi incorporada a reestruturação das dimensões técnicas e administrativas, com ênfase nos princípios de eficiência e de produtividade, incluindo novas consultas que culminaram na Reforma Universitária de 1968 e na supressão das cátedras em predileção aos Centros de Ensino (Pereira, 2017). As consequências desses atos, acrescidos aos preceitos de divisão disciplinar e especialização do conhecimento, implicam a sedimentação de territórios universitários cuja fragmentação não ocorre apenas curricularmente, mas é espacialmente vista em distintos setores do campus.

O cenário dos campi brasileiros, especialmente naqueles desenvolvidos até a década de 1980, era acentuado por uma modernização burocrática centralizadora, administrada pelo governo federal através do MEC, afastando a autonomia de algumas decisões construtivas das universidades (Atcon, 1970). O espaço desses campi era, então, parte da expressão do desenvolvimento ilusório do “Milagre Econômico” brasileiro, replicado similarmente ao fomento das experiências dos campi com orientação moderna no país como um todo (Segawa, 2012). O paralelismo entre as relações de poder, a evolução da comunicação e o território universitário é extenso. Há estudos que destacam o desenvolvimento de sistemas sociotécnicos voltados à expansão das redes de comunicação e, frequentemente associados desde a descoberta da imprensa, essas estruturas são vistas como decisivamente influentes na construção da esfera pública.

No caso do Campus Trindade, em exemplo que pode ser facilmente expandido, a evolução dos sistemas de comunicação é paralelizada à evolução do campus e ao aprimoramento das estruturas das universidades. Se no começo da década de 1980 a metragem do cabeamento da universidade e a quantidade suportada de ramais figurava a título de celebração no jornal universitário (UFSC, 1981), presentemente, a ubiquidade de equipamentos como roteadores e switches só é interrompida em localidades específicas dos espaços universitários. A rede mundial de computadores amplifica essa difusão de informação para a escala global, sem substituir a relevância das redes físicas de sociabilidade que permeiam o cotidiano dos espaços públicos em escala local. Os milhares de acessos à internet, grande parte realizados a partir da estrutura wifi, alavanca oportunidades de conexão física interpessoal.

Apontamentos sobre o campus em questão

Desde a sua fundação, a sede da Universidade Federal de Santa Catarina foi objeto de estudo de arquitetos, urbanistas, paisagistas e diversos outros profissionais técnicos que apresentaram proposições para o uso e ocupação do campus. Em comum, essas propostas apresentam a busca em favorecer no território universitário as áreas externas de interação social e circulação de pessoas, apesar dos escassos momentos nos quais elas receberam os investimentos necessários para garantir sua qualidade paisagística. Nos anos iniciais de implantação do campus, entre os anos de 1962 e 1971, as infraestruturas das áreas livres representaram 15% do valor total investido no espaço físico da universidade (Pimenta, Andrade, Pimenta e Eller, 1998). Destaca-se neste período a execução do projeto de drenagem, que canalizou os principais cursos d’água da microbacia do campus, e as diretrizes de zoneamento para as primeiras edificações do campus que ocupariam os polígonos formados pelos espaços remanescentes entre as vias e os canais. Diante da omissão aos fluxos naturais das águas, somada à histórica priorização da infraestrutura para automóveis, o desenho do Campus Trindade desenvolveu-se sob visível desconexão espacial, seja pela distância interna entre os edifícios, seja pelas limitantes estruturais em relação à cidade. O princípio da autonomia universitária e o caráter público do seu espaço corroboram com as pretensões de consolidação do campus em rede, tendo como norte a integração espacial entre o campus e a comunidade, a preservação de seus aspectos naturais e a ruptura da estrutura multidisciplinar de seus Centros de Ensino (Pavan et al., 2022).

Fortalecendo os aspectos de centralidade do interior do campus, o projeto paisagístico para a Praça da Cidadania, elaborado na década de 1970 por Roberto Burle Marx, é um marco urbanístico onde sobrevivem os eventos que mantém na universidade seu potencial de troca acadêmica entre as diversas áreas do conhecimento (Kós, Pavan, Mangrich, 2020). Contudo, a execução parcial do desenho da praça não foi suficiente para romper com a segmentação determinada pelo sistema viário. Fracionada pelas duas vias do primeiro plano, a praça ainda expõe o resultado da origem segmentada da UFSC, favorecendo a permanência de automóveis, que prejudica a paisagem e limita as oportunidades de troca entre os Centros de Ensino inseridos em sua estrutura. Executados nas duas primeiras décadas da universidade enquanto instituição unificada, esses três componentes –plano viário, canais de drenagem e praça da cidadania– limitam a rede de sociabilidade pois estabilizam a estrutura das áreas livres do campus, consolidada na setorização institucionalizada em 2005 pelo Plano Diretor da UFSC.

Esse último plano tem como diretrizes iniciais o reforço à centralidade do campus e a organização hierárquica e multidisciplinar dos seus espaços, demarcando na setorização segmentos enrijecidos de territórios delimitados para alguns Centros de Ensino. Enquanto em termos organizacionais, o Campus Trindade se estrutura em setores administrativos que gerenciam os dez Centros de Ensino; em termos quantitativos de provisão de espaços, o campus da UFSC chama atenção pela quantidade de edificações que abriga e as grandes áreas de estacionamento que margeiam os cursos d’água. Passado meio século de sua implantação, o Campus Trindade (Figura 1) comporta hoje uma população de aproximadamente 50 mil pessoas que diariamente por lá circulam desconhecendo, na sua grande maioria, a complexa rede de conexões naturais que permeiam seu território. Estruturada às margens do fluxo de veículos, a infraestrutura para o transporte ativo teve raro destaque na conformação urbana do campus, apesar da crescente demanda de pedestres e ciclistas. A base do desenho viário interno pouco se alterou, segmentado por duas vias de tráfego de veículos motorizados no sentido Leste-Oeste. Entre estas, variadas tipologias de passeios não planejados ou inadequados norteiam a passagem de pessoas entre uma edificação e outra e distribuem a rede de dinâmicas sociais no campus.

Figura 1
Indicação das principais centralidades do Campus Trindade.
Fonte: elaboração própria.

Decodificar para conceber – ensaio conceitual

O Campus Trindade da UFSC tem se demonstrado como relevante objeto para a aplicações de estudos de caso, qualitativos e ensaísticos, na busca da aproximação entre as diretrizes urbanísticas propostas em seus planos e a promoção do território universitário como uma rede de comunicação. A definição dos locais de pontos de encontro, sejam praças consolidadas, planejadas ou cruzamentos (nós) entre trajetórias no campus, podem conformar uma trama interconectada de fontes do conhecimento. Esta análise empírica alinha-se às diagramações visuais mais recentes baseadas na conectividade da caminhada na configuração espacial da universidade em rede (Standaert, 2012; Hajrasouliha, 2017), e se soma aos traços de Paul Baran (1964) para categorizar o campus através dos sistemas de comunicação.

As teorizações de Baran relacionam criticamente a resiliência estrutural de uma rede com o grau de conectividade e a quantidade de nós que o sistema possui. Segundo essa teoria, uma rede de comunicação demonstra-se mais resistente a rupturas, ou seja, menos vulnerável, quanto mais ramificada é a distribuição de sua trama. Tendo esta hipótese em mente, Baran propõe três tipologias de rede: centralizada, descentralizada e distribuída (Figura 2). Além da confiabilidade da rede distribuída, o autor indica o baixo custo de construção e manutenção tipológica, visto a facilidade de criação de novas ramificações e, portanto, pontos de comunicação (Baran, 1964). Embora pensados na origem para avaliar os sistemas de comunicação, influenciando a estruturação da rede mundial de computadores e a ciência de dados, os conceitos apresentados nestes diagramas foram amplamente difundidos e aplicados em diversas outras áreas do conhecimento, incluindo o planejamento de sistemas urbanos (Lyster, 2016; Bodó, Brekke e Hoepman, 2021).

Figura 2
Diagramas de Paul Baran (1964) para conceituar tipologias de redes de comunicação.
Fonte: adaptado de Baran (1964).

Interessa neste momento explorar o potencial transdisciplinar e sistêmico destes diagramas para visualizar, mesmo que conceitualmente, a resiliência e vulnerabilidade de uma instituição a partir da sobreposição dos seus subsistemas organizacionais, digitais e de seus arranjos espaciais. Considerando as intenções institucionais de promover a UFSC como um sistema físico de sociabilidade e comunicação, os diagramas de Baran foram utilizados para uma reflexão crítica sobre seu território, tendo como pano de fundo sua infraestrutura atualmente edificada. Sobrepostos a três interpretações temporais da gestão espacial do Campus Trindade, os ensaios a seguir buscam conceituar o sistema de espaços livres para viabilizá-los como rede de difusão do conhecimento, onde os nós são representados pelas praças e eventuais pontos de encontro e as linhas de transmissão pelas trajetórias de caminhada.

A Praça da Cidadania e o campus como uma rede centralizada (1970)

Partimos dos traços originais do sistema viário do Campus Trindade que, embora projetado por técnicos brasileiros, tinha como fundamento o modelo de campus norte-americano, implantando isolado da região central da cidade. Sobre as duas vias principais e perpendiculares que definiram a configuração do campus, a parte construída do projeto paisagístico elaborado na década de 1970 consolidou o potencial centralizador da universidade a partir da Praça da Cidadania. Palco de históricos eventos democráticos na UFSC, este ponto de convergência dos encontros acadêmicos evidenciou fortemente, a partir de debates entre acadêmicos, o caráter cívico da universidade pública como um sistema de produção de novas ideias e mudanças políticas significativas para a sociedade (Kós, Pavan e Mangrich, 2020).

Entretanto, tal configuração espacial centralizada na praça (Figura 3) limitava os encontros interdisciplinares e transdisciplinares e, com isso, o potencial pedagógico do campus universitário. Sem a interação presencial entre os estudantes e a comunidade, fica comprometido o aprendizado como um processo educacional ativo. Diante da escala territorial do Campus Trindade, que totaliza 144 hectares de superfície, a ausência de outras praças e locais de encontro restringia a formação universitária ao conhecimento transmitido unilateralmente nos livros e na sala de aula, na biblioteca ou em outros edifícios acadêmicos. Assim, a decisão de tornar a Praça da Cidadania como centralidade e único ponto de convergência destes edifícios isolados, não intencionalmente, fragilizava o diálogo transdisciplinar com a sociedade pois tornava fisicamente distante a comunidade vizinha da informação que era produzida no campus.

Figura 3
Analogia do campus como uma rede centralizada, tendo a Praça da Cidadania como centro de convergência social. Fonte: elaboração própria.

Mantida por décadas esta decisão com o escasso tratamento paisagístico oferecido e os baixos recursos financeiros despendidos às bordas do campus impactavam a apropriação do campus pela sociedade civil que, frequentemente, percebia a universidade como um território restrito aos acadêmicos. Ao priorizar investimentos a um grupo seleto que acessa a universidade pelo veículo privado, em oposição ao deslocamento a pé e ao transporte coletivo, o campus como uma rede centralizada reproduz esse distanciamento histórico das áreas periféricas e aumenta a vulnerabilidade da trama de socialização do saber como bem comum.

A estrutura multidisciplinar e o campus como uma rede descentralizada (2005)

Sem romper com o marco urbanístico da Praça da Cidadania, a comissão técnica que elaborou o Plano Diretor do Campus da UFSC, em 2005, apresentou uma série de diretrizes e proposições que definiriam avanços em seu território. Tendo o Eixo Central como estruturador da proposta, destaca-se neste documento o lançamento do mapa de setorização que, consolidado até hoje pelos técnicos da universidade, dividiu o território do Campus Trindade em setores delimitados e nomeados pelos Centros de Ensino predominantes. O traçado viário e os rios canalizados do campus foram critérios coadjuvantes na definição dos setores que previam ainda em seu interior praças setoriais como centralidades secundárias na integração acadêmica. Embora a primeira diretriz indicasse o “reforço à centralidade do Campus”, esta rede de praças, centrais nos Centros de Ensino, mas descentralizadas no território, intencionava compor a universidade como um “sistema articulado de espaços públicos” (Pimenta et al., 1998).

Estes ideais, contudo, não foram materializados no espaço físico do campus, à exceção da consolidação da estrutura multidisciplinar reforçada pela camada virtual graficada pela setorização em especialidades. Mesmo sem receber investimentos, as praças e os setores dispersaram os Centros de Ensino como novos subsistemas centrais, configurando o sistema macro do campus como uma rede descentralizada (Figura 4). Estes pontos de convergência definiram assim polígonos espaciais que delimitam visões de mundo encerradas em vertentes específicas de ensino e pesquisa. A conectividade e comunicação entre as áreas do conhecimento, potencialmente favorecida no intercâmbio entre disciplinas, ficaram limitadas às edificações sem vínculo direto a um Centro de Ensino predominante, planejadas para atender multiusuários. Inclusive em setores conceitualmente interdisciplinares, a prioridade de investimentos se restringiu aos espaços fechados dos edifícios, ficando os espaços livres desarticulados como “sobras” territoriais sem tratamento paisagístico adequado que as promovesse como um sistema de praças.

Figura 4
Análise do campus como uma rede descentralizada, tendo os Centros de Ensino como pontos de convergência social.
Fonte: elaboração própria.

Essa abordagem leva a questionar a estrutura multidisciplinar de organização do campus universitário como uma rede descentralizada, que tem se demonstrado frágil na concepção da universidade como uma rede de transmissão do saber científico e social. Culturalmente enraizado como funcional entre os que decidem a destinação dos recursos financeiros da universidade, a setorização em Centros de Ensino reforça um movimento global de empreendedorismo acadêmico especializado que fragiliza o caráter público ao excluir uma compreensão sistêmica dos problemas mais estruturais da sociedade. Com isso, a resiliência da rede descentralizada do campus se torna vulnerável na medida em que são priorizados problemas específicos e demandas de uma minoria. Ao reconectar a trama da comunidade acadêmica com a sociedade, a universidade pode reequilibrar e harmonizar o peso dos seus componentes, representados pelos departamentos de ensino que a constituem.

As dinâmicas sociais que fazem do campus uma rede distribuída

A entrada do século XXI foi marcada por uma significativa mudança de paradigmas nos territórios das universidades públicas brasileiras. As políticas públicas de acesso ao Ensino Superior, principalmente o Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI (Decreto nº 6.096/2007) e a Lei de Cotas para o Ensino Superior (Lei nº 12.711/2012), acendem a urgência de mudanças dos aspectos pedagógico, sociais e ambientais e o desafio de adequação territorial das universidades que se mostraram defasadas ao novo contexto. No Campus Trindade, consolidado na década de 1960, embora seja ainda dominante a estrutura multidisciplinar fragmentada em Centros de Ensino e os impactos ambientais decorrentes da presença massiva dos automóveis, são visíveis as incipientes dinâmicas sociais de uma comunidade acadêmica mais plural e diversa.

A renovação e amplificação das camadas de socialização acadêmica projeta ideologicamente a transformação da sede da UFSC que, apesar da falta de recursos financeiros destinados ao espaço físico, reflete uma diluição territorial dos pontos de encontro. O terceiro ensaio explora uma visualização do sistema de áreas livres como uma rede distribuída de espaços públicos voltados para a aprendizagem e comunicação do saber (Figura 5). Esse conceito rompe com a estrutura fragmentada em áreas do conhecimento específicas e se vincula às teorias sistêmicas. Para a construção desta trama, foram consideradas a distribuição de potenciais pontos de encontro e ligações retilíneas e abstratas que fazem sua interconexão. Os eventuais acessos ao campus foram igualmente incluídos como pontos de comunicação nas bordas geográficas que conectam a comunidade acadêmica à urbanidade do entorno. A totalidade desta malha virtual potencializa as oportunidades de aprendizagem transdisciplinar no território universitário, como um complexo sistema de espaços públicos.

Figura 5
Analogia do campus como uma rede distribuída, tendo as áreas livres como uma trama de potenciais conexões sociais e pontos de encontro.
Fonte: elaboração própria.

Afora as decisões institucionais de planejar praças à margem de recursos financeiros, dados seus elevados custos de implantação e manutenção, acontece no campus a espontaneidade da interação social. Proporcionar espaços para o encontro desse pensamento sistêmico, e com potencial de transmissão positiva na direção do futuro da sociedade, pode ser muito mais simples e eficaz do que obras complexas em edificações que não foram criadas almejando um processo interdisciplinar e, muito menos, transdisciplinar. Investir em pequenas melhorias na infraestrutura das áreas livres, desde as bordas da universidade até o térreo das edificações, reforça no campus uma teia de caminhos que conecta pontos de encontros improvisados, permitindo o diálogo entre grupos distintos. A partir do fortalecimento da caminhada e dos encontros a ela associados, a sobreposição dessas camadas permite uma visão sistêmica que aproxima a universidade pública à cidade no enfrentamento simultâneo das crises sociais e ambientais. Tornar as bordas do campus permeáveis à comunidade significa compor uma rede espacial de comunicação resiliente e distribuída, alicerçada em formas diversificadas de socialização.

Visualizar para projetar – ensaio prático

A aplicação conceitual das tipologias de rede de comunicação sobrepostas no Campus Trindade demonstrou-se efetiva quanto às potencialidades do território universitário como um sistema distribuído de saber. Contudo, estas visualizações implicaram em desdobramentos acerca de como as verdadeiras dinâmicas sociais compõem atualmente o sistema de áreas livres da UFSC. Salvo a abstração dos seus resultados, permanece a pergunta que orienta o ensaio: na prática, em qual tipologia de rede de comunicação o campus da UFSC melhor se enquadra? Embora os diagramas de Paul Baran (1964) tenham inspirado este trabalho, sua lógica implica em contradições quando aplicados à realidade que permeia as interações do campus.

Pela lógica de Baran, a condição básica de uma rede distribuída é a confiabilidade e alta resiliência dos “elos” de conexão da rede. Isso se dá quando, em uma situação de ruptura de parte do sistema, outros elos com a mesma “capacidade de carga” assumem o papel do elo danificado mantendo a integridade e funcionamento da estrutura. A fragilidade desta hipótese, aplicada aos fluxos humanos em um contexto urbano, reside na certeza de equivalência dos componentes da rede. Por exemplo, os elos que definem um sistema de transporte ativo, ou seja, as vias de pedestres, não são simétricos entre si e, em casos de interrupção de um dos trechos, invariavelmente haverá sobrecarga em outros. Diante dessa lacuna, partimos para um ensaio prático que busca subsídios quantitativos que contribuam na investigação sobre a tipologia de rede que melhor define o Campus Trindade. Este trabalho dá sequência a uma ampla pesquisa que explora ferramentas gráficas relevantes para visualizar as dinâmicas a partir de dados digitais, alguns parametrizados com o auxílio do editor de algoritmos Grasshopper (Mangrich et al., 2019) e outros utilizando simultaneamente o Kepler.gl e QGis (Pavan et al., 2022).

Para tal, seguimos na analogia à ideia de Baran, interpretando a rede viária de mobilidade ativa do campus como potenciais fios de comunicação do conhecimento. Sobre esta base infraestrutural (física), ampliamos a análise a outras teorias que trouxessem subsídios mensuráveis às camadas dos fluxos de pessoas que percorrem o sistema. Para Arlie Adkins, Jennifer Dill, Gretchen Allison Luhr e Margaret Neal (2012), o sucesso de um sistema de transporte não deveria ser quantificado pela simples contagem de indivíduos, mas também pela qualidade espacial onde esses deslocamentos ocorrem. Embora o campus apresente múltiplas e eventuais conexões entre os edifícios, estabelecendo traços de uma suposta rede distribuída, determinadas características espaciais como as condições de calçada, acessibilidade, densidade populacional, disponibilidade de áreas verdes podem enfraquecer ou anular a funcionalidade do sistema, comprometendo o funcionamento caso ocorra uma interrupção de algum dos elos.

Considerando estas inúmeras características, neste ensaio, a trama territorial do campus é analisada através de um conjunto de dados selecionados que permeiam diferentes domínios da universidade. De maneira geral, os procedimentos metodológicos propostos para o ensaio prático exploram a ferramenta opensource QGis para a sobreposição de duas camadas principais: os dados quantitativos das dinâmicas sociais, obtidas pelos registros nos pontos de conexão à rede wifi Eduroam, representando a densidade dos deslocamentos realizados no campus; e os dados qualitativos do ambiente construído, obtidos pelos levantamentos cartográficos da malha viária, edificações e demais infraestruturas.

Os dados de wifi, deslocamentos e a densidade populacional do campus

A primeira análise ocorre através da visualização de deslocamentos no campus, representados pelos registros de conexão na rede wifi Eduroam. Este procedimento busca, assim, verificar os fluxos reais da comunidade acadêmica para classificar o campus dentro das tipologias de rede de Baran. Esta aproximação à realidade das dinâmicas sociais foi possível a partir de um processo multidisciplinar de seleção, anonimização e visualização das conexões armazenadas no banco de dados da UFSC por décadas. A rede wifi possui uma quantidade de dados relevantes para compreender como estas dinâmicas estão distribuídas no território universitário.  Numericamente, os 538 pontos de conexão, utilizados por cerca de 35 mil usuários cadastrados, geram cerca de 2 milhões de registros diários contendo o horário da conexão e a coordenada geográfica do roteador. Após o processo de anonimização, pode-se traçar as trajetórias resultantes entre um ponto de conexão e o roteador subsequente, ou seja, origem e destino dos grupos de pedestres dentro do campus (Mangrich et al., 2019).

A Figura 6 demonstra a distribuição da densidade populacional do Campus Trindade obtida através do número de conexões à rede wifi em dois horários diferentes – em horário de atividade acadêmica e no intervalo do almoço, mostrando maior densidade próximo à Praça da Cidadania onde está o Restaurante Universitário. Para esta imagem, foram selecionados os dados de um dia típico de atividades acadêmicas em 2019, buscando expor as regiões onde há maior potencialidade de encontros. Conectando os pontos de conexão, o mapa de densidade foi sobreposto à malha viária peatonal do campus, buscando a intensidade dos fluxos de pedestres que compõem a rede de interações sociais entre a comunidade acadêmica. Ao analisar onde, com qual frequência e intensidade estes deslocamentos acontecem, podemos também identificar características ambientais relevantes para a confiabilidade dos elos de comunicação da rede universitária, auxiliando assim, na validação das escolhas de variáveis ambientais do campus que irão determinar os níveis de confiabilidade dos elos do sistema (Oliveira et al., 2021).

Figura 6
Mapa de calor demarcando as diferentes densidades no campus.
Fonte: elaboração própria.

As análises de Hajhasouliha (2017) levam em consideração a dimensão de compacidade do campus através do nearest neighbor index, que mede e classifica a dispersão de distribuições espaciais. Esse índice é dado por uma escala com valores que variam de 0 a 2,15. Valores próximos de zero indicam sinais de clusterização ou centralização, valores próximos de 1 indicam dispersão com distribuição aleatória, e valores próximos de 2,15 indicam dispersão com distribuição normal (Hajrasouliha, 2017; El-Borsh, El-Mewavi e Zaraoura, 2017). A rede de infraestruturas do campus resultou em um índice de 0,74, indicando uma tendência de compactação das infraestruturas de acordo com a teoria de Hajhasouliha, e traduzido para a ideia de Baran (1964) como características de rede descentralizada ou centralizada. Este índice pode ser explicado pela falta de ocupação das infraestruturas acadêmicas nas bordas do campus, hoje cercadas e ocupadas por grandes áreas verdes ou desapropriadas para ampliação do sistema viários municipal, com escassos acessos aos pedestres e evidenciado pelas manchas de calor obtidas da densidade da rede de wifi.

Complementar à imagem anterior, a Figura 7 na próxima página, demonstra as rotas mais utilizadas do campus durante o período observado, ou seja, dado pelo número total de conexões à rede wifi em três dias consecutivos de agosto de 2019. O mapa evidencia uma convergência de fluxos em direção à região central do campus, seguindo a mesma lógica observada na visualização da densidade populacional em dois períodos distintos. Destacam-se algumas ponderações identificadas nos fenômenos visualizados. O primeiro é a Biblioteca Central, cujo principal acesso é a Praça da Cidadania, e que concentra um ponto de destino com alta frequência de usuários do campus. O Restaurante Universitário, no lado sul da praça, conflui o maior pico de interações sociais durante os intervalos entre as aulas e reforça a utilização da área central do campus. Essas edificações fazem da Praça da Cidadania um grande conector do campus, intermediando a comunicação peatonal entre os Centros de Ensino situados nos demais setores. A densidade populacional (Figura 6), complementada pelos deslocamentos (Figura 7), demonstra que os principais pontos de origem e destino dos trajetos ocorrem no entorno da praça, mas não na praça em si, configurando-a como área de passagem com grande potencial de centralização de socialização.

Figura 7
Contagem de fluxo de pedestres obtida pelos dados de Wi-Fi.
Fonte: elaboração própria.
Os dados ambientais e a rede infraestrutural do campus

A segunda parte é a dimensão ambiental representada por dados do ambiente construído, caracterizado pela conectividade da malha viária, presença de áreas verdes e áreas de estacionamento, diversidade de usos, e que conformam a rede física de infraestruturas. No contexto das cidades, as condições pelas quais os usuários se deslocam possuem um impacto significativo nas escolhas de rota e no sucesso do sistema de mobilidade ativa. Nos interessa apontar aqui que nível de confiabilidade desses elos pode ser acessado através de uma avaliação quantitativa de características da infraestrutura de caminhada, consideradas relevantes para ativação e funcionamento da rede peatonal do campus. Centenas de variáveis ambientais foram hipotetizadas por pesquisadores para descrever as características do contexto urbano e suas influências sobre a capacidade de caminhar (Brownson, Hoehner, Day, Forsyth e Sallis, 2009; Ewing e Cervero, 2010).

Através da visualização dos deslocamentos da comunidade acadêmica, estruturada em uma revisão teórica acerca de elementos do ambiente construído, selecionamos variáveis que melhor descrevem os níveis de caminhabilidade em contextos urbanos e que, simultaneamente, se enquadram nas características morfológicas do “well-designed campus” de Hajhasouliha (2017). As variáveis selecionadas (Figura 8), previamente operacionalizadas em Oliveira et al. (2021), são: densidade populacional, densidade de intersecções, diversidade de usos do solo, acessibilidade ao transporte público, acessibilidade a pontos de interesse e proporção de estacionamentos. Foram observados 9100 segmentos da rede de pedestres e suas respectivas características ambientais, produzindo dessa forma, uma cartografia bastante precisa sobre as condições da rede de mobilidade do campus. Para validar o modelo proposto, as variáveis escolhidas foram testadas em um modelo de regressão linear ordinária com curva ajustada (r²) de 0,742, isto significa que o modelo é capaz de prever 74% dos deslocamentos utilizando as características ambientais escolhidas (Oliveira et al., 2021).

Figura 8
Variáveis aplicadas à malha peatonal do campus.
Fonte: elaboração própria.

Como demonstrado nas primeiras visualizações, o campus apresenta regiões de densidade descentralizadas que ocorrem em torno da região central do campus. Há diferenças significativas entre as populações de cada Centro de Ensino, localizados às margens do Eixo Central, resultando em baixa integração entre distintas áreas do conhecimento. Apesar da densidade populacional ser favorável para a caminhada, no Campus Trindade, os pontos mais densos podem indicar concentrações divergentes de interações sociais e investimentos em infraestrutura, subvalorizando setores periféricos (Pedroso, 2019). Essas variáveis podem auxiliar na construção de argumentos que defendem uma melhor distribuição das atividades acadêmicas no território universitário com impacto positivo nas oportunidades informais de aprendizagem. A permeabilidade do desenho da praça, somada à importância dos edifícios que a circundam –Biblioteca Central, Reitoria, Centro de Eventos, Restaurante Universitário– e a ausência de áreas de estacionamento, geram condições ideais de caminhabilidade no contexto do desenho urbano do campus.

A partir destas novas diagramações, evidenciam-se os contínuos esforços de planejamento na região central em detrimento das regiões do entorno, comprometendo a confiabilidade dos elos periféricos da rede observada e a comunicação das infraestruturas da universidade. Atualmente fragilizados pelas condições de caminhabilidade, as bordas do campus são fundamentais para garantir a presença da universidade na esfera urbana, demandando investimentos e melhor distribuição das infraestruturas de caminhada e socialização para um campus efetivamente em rede. O Eixo Central concentra características ambientais fundamentais para a interação social e que devem ser tomadas como exemplares para as bordas do campus. Em essência, a partir desses ensaios é possível aferir que a rede infraestrutural da UFSC não é distribuída, oscilando entre a tipologia centralizada e descentralizada. Como consequência, as dinâmicas sociais e de mobilidade seguem um padrão de décadas que reforçam características de centralização. A falta de investimentos dos espaços de caminhada nas regiões periféricas do campus compromete a ideia de rede distribuída, já que a capacidade dos caminhos secundários é limitada no caso de interrupção de parte da rede. Ao aplicar a ideia de universidade em rede distribuída sobre o mapa do Campus Trindade e os fluxos reais, foi possível encontrar características espaciais relevantes para o fortalecimento dos “elos” entre a infraestrutura para a caminhada e as interações sociais da comunidade da UFSC e do entorno.

Figura 9
Índice de caminhabilidade final considerando a soma das variáveis ambientais, considerado como parâmetro para o nível de confiabilidade dos elos da rede.
Fonte: elaboração própria.

Discussão

Diante da crescente supressão de áreas verdes e densificação das cidades, amplia-se o anseio nos territórios universitários para incorporar, à sua função de espaço de aprendizagem e assistência comunitária, o potencial de parques urbanos. O modelo de campus norte-americano retrabalhado no Brasil na década de 1970 por Rudolph Atcon, com a função de “afastar visitantes indesejáveis e criar uma barreira acústica” que protegeria as atividades acadêmicas dos ruídos da cidade, previa um anel verde impenetrável nos limites territoriais das universidades, permeado por um sistema de acesso que privilegiava os automóveis (Buffa e Pinto, 2016). A concepção de parque como um sistema de espaços livres inverte essa lógica de campus centralizado, fortalecendo áreas verdes permeáveis que agregam valor pedagógico à universidade ao estimular o fluxo de pessoas em redes de sociabilidade e transmissão do que é produzido e reproduzido pela comunidade.

Contemporâneo à proposta de Atcon, os estudos de Paul Baran (1964) sobre as redes de comunicação traziam à época uma visão relevante sobre a resiliência sistêmica e que, aplicada ao desenho do campus, pode contribuir para a eficácia do diálogo acadêmico. A comparação dos três conceitos – centralizada, descentralizada e distribuída – reforça a argumentação de que a universidade pública brasileira tem, em um campus que reconhece a complexidade, a grandeza e a diversidade de sua nação e os recursos essenciais para costurar alternativas ao sistema socioecológico em colapso global. De certa maneira, podemos aproximar os ensaios feitos a partir das imagens de Baran ao conceito de alegoria, com uma nova interpretação do já dito, não intencionando restaurar um significado original perdido, mas adicionar outro significado à imagem antes obscurecida (Owens, 1980).

Similarmente, o escrito de Brown e Duguid (1996), embora imbuído de intuição e projeções, traz ao início da era digital pertinentes revelações sobre o futuro das universidades. Para eles, a aprendizagem estava (e ainda está) intrinsecamente relacionada às oportunidades de sociabilidade que ocorrem entre a comunidade e o campus, algo que a internet oferece apenas como uma “ilusão” de participação, limitada a “uma impressão de acesso ao mesmo tempo que recusa a experiência real”. Reconhecendo as potencialidades das tecnologias de informação e comunicação, que ainda refletem uma tendência centralizadora de ensino, as universidades precisam repensar seus espaços físicos como fecundas ferramentas de aprendizagem e traçar novos caminhos para compor uma rede de infraestruturas bem distribuídas (Brown e Duguid, 1996). Enquanto esta organização territorial e acadêmica descentralizada e transdisciplinar não se materializa, perpetua-se a rotina do conhecimento especializado, onde diante de uma constante quebra de transmissão originam-se falhas na matriz de comunicação científica.

O alinhavar da conectividade do campus está relacionado na influência que a infraestrutura para caminhada pode exercer nos indivíduos em formação em contato constante com acadêmicos de outras áreas e comunidades. Ao se intensificar o deslocamento a pé – as linhas de transmissão do conhecimento – se densificam os nós que compõem a rede de espaços livres (vazios) do campus e com eles, se potencializam os encontros espontâneos e os pontos de aprendizagem colaborativa (Standaert, 2012). O conceito de rede distribuída, mais resiliente e confiável, reforça o argumento da importância do diálogo para consolidar a aprendizagem como um processo ativo, acessando e desenvolvendo experiências em conexões dentro e fora da universidade. O território universitário desempenha um papel vital no aprofundamento da compreensão da responsabilidade dos estudantes, como futuros profissionais e cidadãos no cuidado socioecológico.

Embora o elitismo, a exclusão e as desigualdades estejam associados à origem das universidades em diversos países, sobrevive ainda na comunidade o embate entre uma linha acadêmica neoliberal, mercantilizada e potencialmente privatizada e uma outra vertente que atua em defesa de uma sociedade igualitária e democrática. O campus brasileiro do século XXI está mais plural e acessível, mas não menos conflituoso e desafiador, exigindo que a universidade reafirme sua função social no enfrentamento dos desafios contemporâneos e à sua efetiva democratização (Passos, 2015). Se a diversidade e a sustentabilidade são motes recorrentes nas mídias publicitárias e não-governamentais de hoje, é urgente a priorização de recursos financeiros destinados aos espaços capazes de acolher debates que possam, a partir da integração de diferentes visões, redirecionar os rumos da sociedade. O cenário de revitalização democrática e acesso ampliado às universidades brasileiras reforça a educação e pesquisa como bens públicos e sugere uma forte participação da comunidade científica e da sociedade civil na formulação, comunicação e execução das novas práticas em debate.

Para além do debate difundido nas mídias de comunicação, a capacidade de transformação emerge de experiências obtidas nos deslocamentos na cidade e no campus, envolvendo interações com elementos humanos e não humanos (Brown e Duguid, 1996; Schwanen e Nixon, 2020). A revolução científica e social tem como missão o desenvolvimento da sabedoria entre estudantes, pesquisadores e cidadãos, para reconhecer o que é valioso na vida, em todas as áreas do conhecimento e tecnologias de comunicação, e como elas se relacionam com o resto do mundo. Para viabilizar no campus uma mudança dessa magnitude é preciso dar visibilidade aos fluxos das relações humanas e da natureza, assim como às camadas virtuais das informações produzidas pelas TICs. A extensa rede de dados urbanos disponíveis e em dinâmica atualização representa uma oportunidade crescente para gestores públicos e planejadores urbanos compreenderem fenômenos sociais sob perspectivas que não estavam visíveis em ferramentas tradicionais de mapeamento. Assim como as tecnologias de monitoramento climático, as dinâmicas humanas nas cidades e os dados digitais por elas produzidas permitem aos formuladores de políticas reconhecer padrões de vida até então ocultos.

É de Langdon Winner (1986) a ideia de que as alterações nas tecnologias e sistemas sociotécnicos que cercam a vida são marcadores críticos na diferenciação dos tempos. À época em que escrevia, já principiava um reconhecimento de como as tecnologias estavam alterando as instituições humanas à medida em que eram construídas e colocadas em uso, gerando assim novos mundos. Para Yanni Alexander Loukissas (2019), todos os dados são inevitavelmente amarrados aos locais, instituições, processos e pessoas que moldam sua significância e uso. Ele argumenta que, além do simples acesso, a compreensão desses registros requer a localidade dos dados e o entendimento em seus vínculos de origem, considerando as diferentes maneiras pelas quais as instituições valorizam seus sistemas informacionais.

A visão que construímos aqui coaduna com autores que compreendem as universidades na inflexão entre seguirem no desenvolvimento regularmente refletido em práticas de comoditização espacial, e a atuação na construção de caminhos inovadores para as dinâmicas sociais e ecológicas, comunicando e se envolvendo nas responsabilidades que emergem a partir dessas mudanças (Tassone et al., 2018). O resgate da diversidade de conexões sociais e linhas de transmissão em diferentes escalas naturais e urbanas é um dos grandes desafios da humanidade. No contexto do campus, o isolamento e convergência destes elos de sociabilidade a um único nó fragmentam o intercâmbio do conhecimento em Centros de Ensino específicos e podem ser um obstáculo para viabilizar a conectividade desta trama socioambiental. Ao priorizar as áreas livres e as trajetórias a pé como estrutura basal do território universitário como uma rede bem distribuída de aprendizagem, valoriza-se a resiliência da presente e futuras gerações de ecossistemas humanos e não-humanos ■


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Mangrich, C. P., Oliveira, L. F. de, Pavan, L. H. e Kós, J. R. (Noviembre de 2022 – Abril de 2023). Entre redes de comunicação e socialização do saber. Projeções territoriais para uma universidade pública brasileira. [En línea]. AREA, 29(1). Recuperado de https://area.fadu.uba.ar/area-2901/mangrich_et_al2901/

Possui Mestrado concluído e Doutorado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialização em Administração e Gestão Pública pela Faculdade Dom Bosco e Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFSC. Desde 2012, atua como arquiteta e urbanista na Coordenadoria de Planejamento do Espaço Físico da UFSC e, desde 2018, como pesquisadora do Laboratório de Ecologia Urbana (LEUr), integrando as ações técnicas com as iniciativas acadêmicas, tendo como foco uma visão ecossistêmica, evidenciando o fluxo de pessoas como facilitador do potencial transdisciplinar do campus universitário.
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Desde 2017, membro do Laboratório de Ecologia Urbana (LEUr), onde pesquisa métodos de exploração e visualização de dados digitais no planejamento urbano de campus universitários, com ênfase em estudos de Caminhabilidade. A pesquisa incorpora também os seguintes temas: big-data, mapeamento de dinâmicas humanas, Sistemas de Informação Geográfica, campus universitários, resiliência socioambiental, mobilidade ativa e transdisciplinaridade.
Doutorando no programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), programa no qual também concluiu o mestrado. Desde 2017, pesquisador no Laboratório de Ecologia Urbana (LEUr), no qual desenvolve pesquisas vinculadas à ecologia urbana, espaço infraestrutural, planejamento e projeto de campus universitário, visualização de dados e técnicas de representação na arquitetura e urbanismo. Bacharel em arquitetura e urbanismo pela UFSC. Participou como membro do Team Minga, equipe campeã do Solar Decathlon Latin American and Caribbean 2019 em parceria entre UFSC, Pontificia Universidad Javeriana, Cali e o Instituto Federal de Santa Catarina.
É PhD pela University of Strathclyde, Reino Unido e Pós-Doutorado na University of Wollongong, Austrália. Mestre pela Tulane University, EUA. Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Laboratório de Ecologia Urbana (LEUr). Foi professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e atua no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB-UFRJ), desde 1994. Em 2008, passa a lecionar na Universidade Federal de Santa Catarina e também é docente do Pós-ARQ/UFSC.