“Espaços possíveis, mas improváveis”. Mutabilidade e reutilização no design de joalharia


MÓNICA ROMÃOZINHO
Universidade de Lisboa. Faculdade de Arquitectura
Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design
Instituto Politécnico de Castelo Branco
Escola Superior de Artes Aplicadas



Resumo

Uma jóia pode provocar distintas apropriações e emoções tal como um habitáculo, espaço poético e íntimo. Neste projecto, partimos da experimentação em torno de arquitecturas assimétricas inspiradas pela natureza e pela capacidade de se metamorfosear. A finalidade não era inicialmente a construção, mas a transposição deste processo para o universo da joalharia suscitaria a concretização destes conceitos espaciais. O presente artigo foca a metodologia subjacente à criação de um conjunto de peças de joalharia contemporânea, assim como a três princípios fundamentais: mutabilidade, versatilidade e reutilização. Recorremos a esquissos, modelos de cartão, software 3D, assim como impressão 3D e técnicas tradicionais.

Palavras-chave
Design, Espaço, Joalharia, Mutabilidade, Reutilização

Génese e conceito do projecto de joalharia “Espaços possíveis, mas improváveis”

No Design de Interiores e na Arquitectura, procuramos responder às necessidades e aspirações da sociedade, podendo o público ser anónimo ou não. Podemos desenvolver uma narrativa, comunicar uma mensagem específica, explorar um sentido cénico que nos aproxima de áreas criativas como as artes plásticas, a cenografia e, sem dúvida, a própria joalharia. São áreas fascinantes porque são responsáveis pela produção de paisagens, espaços ou objectos que nos fazem sonhar não se limitando a ser funcionais. Uma peça de joalharia não funciona como abrigo dada a sua escala, não nos protege do frio, pode ser igualmente ergonómica mas não necessariamente utilitária pois a dimensão de um objecto não é simplesmente física, requer uma visão antropológica:

Jewellery has a physical existence, but the reason why we wear it is far more mysterious and invisible. Its mobile aspect gives jewellery potential as a constant, if quiet intervention into everyday life. A piece of jewellery is carried close to the body and can therefore be an extension of the body itself, a part of that person’s identity (Nygaard e Winther, 2018, p. 74).
[A joalharia tem uma existência física, mas a razão pela qual a usamos é muito mais misteriosa e invisível. O seu aspecto móvel dá potencial à joalharia como uma constante e silenciosa intervenção na vida quotidiana. Uma peça de joalharia é transportada junto ao corpo e pode, portanto, ser uma extensão do próprio corpo, uma parte da identidade dessa pessoa.]

Acreditamos que a sua função primordial é de se constituir como plataforma da nossa individualidade, tal como uma casa, um habitáculo, espaço íntimo e de intimidade. Para Sabine Pagan, enquanto o corpo humano diferencia a prática da arquitectura da joalharia, ao mesmo tempo parece aproximá-la, pois o corpo não se reporta apenas a uma entidade física mas também corresponde a uma estrutura mental e quer uma quer outra contribuem para qualidades humanas como as emoções e a nossa capacidade de memória (Pagan, 2011). Nesta comunicação, joalharia e espaço podem partilhar princípios como: plasticidade, dialéctica interior-exterior, jogo de escalas, contraste de cor ou textura, alternância entre luz e sombra, movimento, ritmo, repetição, versatilidade ou mutabilidade.

O presente projecto de investigação, inserido num pós-doutoramento em Design e desenvolvido dentro do CIAUD (Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design, da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa), consiste na concepção da colecção de joalharia “Espaços possíveis, mas improváveis”. Esta parte da experimentação em torno do espaço, dos seus princípios, da sua geometria e cruza-se com a Arquitectura e o Design de Interiores ao nível conceptual e metodológico. Esta mesma colecção desdobra-se em linhas de carácter único unidas pela mesma filosofia. A nossa explanação inicial centrou-se em arquitecturas orgânicas e assimétricas inspiradas pela natureza, assim como de tensões entre cores, materiais, transparências. Explorámos o tema de habitáculos possíveis embora improváveis, fortemente ancorados em referências literárias e arquitectónicas. Fernando Pessoa, sob o heterónimo de Bernardo Soares, afirmaria o alcance ilimitado da nossa imaginação sensível e as paisagens que esta pode despertar:

Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar (Soares, 1985, pp. 97-98).

Contudo, destacamos a obra As cidades invisíveis de Italo Calvino, na qual o personagem principal, Marco Polo, descreve as suas cidades “impossíveis” ao imperador Kublai Kan, de que é exemplo Bauci, composta por habitats sobrelevados que nascem possivelmente do respeito pela terra a ponto de evitar qualquer contacto com a mesma.

Depois de ter caminhado sete dias através de bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. (…) Nada da cidade toca o solo à excepção daquelas pernas compridíssimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem. Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a terra, que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto, que a amam tal como ela era antes dela e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passá-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria essência (Calvino, 2009, pp. 47-48).

Nesta viagem através do desenho e de maquetas experimentais, conjecturámos volumetrias que umas vezes se elevam sobre pilotis ou então emergem timidamente da natureza para receber luz e ventilação, numa atitude de certo modo wrightiana. O sentido de anti-decomposição e consequentemente de unidade são princípios compositivos que aproximam estes desenhos da chamada arquitectura orgânica, em que a organização essencial nasce das necessidades internas e de condicionantes externas, em que cada arquitecto tenta ligar a própria volumetria e geometria do espaço projectado à topografia do próprio terreno assim como pelos próprios materiais, profundamente ligados ao lugar. O que nos intriga é desenhar espaços habitáveis e habitados em oposição a células de habitar anónimas:

There should be as many kinds (styles) of houses as there are kinds (styles) of people and as many differentiations as there are different individuals. A man who has individuality (and what man lacks it?) has a right to its expression in his own environment (Wright, 1908).
[Deveria haver tantos tipos (estilos) de casas quanto tipos (estilos) de pessoas e tantas diferenciações quanto indivíduos diferentes. Um homem que tem individualidade (e qual homem é desprovido dela?) tem direito à sua expressão no seu próprio ambiente.]

As maquetas em cartolina Bristol viabilizam estes processos, como metodologia experimental complementar aos desenhos trabalhados a caneta, esferográfica, lápis de grafite, lápis de cor, marcadores e ecoline. Sem utopia, tornamo-nos estáticos, perdemos a capacidade de moldar a história, afastamo-nos da possibilidade de desenhar o futuro. Esta fase embrionária ancora-se na intenção de repensar o território através da concepção de espaços fluídos, experimentais, irregulares, envoltos em membranas orgânicas que se adaptam à morfologia do terreno (ver Figura 1). No interior, lê-se, desenha-se, escreve-se, ouve-se música emitida pela natureza ou por uma orquestra improvisada, conversa-se, comunica-se. Há espaço e tempo para divagar e contemplar a natureza. Procurámos sistematizar soluções em resposta a estas funções. Estandardizamos alguns componentes, nomeadamente volumes interiores, coberturas ou mobiliário que também nasce da geometria destes espaços (ver Figura 1). Recupera-se o sentido de abrigo em volumes soltos, que evocam o sentido de intimidade e que se opõe ao conceito de célula de habitar anónima. Tapetes modelam espacialidades, à imagem de tatamis. Dominam as cores da terra, do céu, da água, do fogo.

Figura 1
Espacialidades experimentais que estiveram na génese do projecto de joalharia: Utopia #VII-1. Aparo e “ecoline” s/papel, 28,9 x 20,8 cm, 2017, Mónica Romãozinho.

O que nos estimulou, neste tipo de exercício, não foi a construção em si, mas a possibilidade de construção, equacionada em função do “genius loci: ideia é o quê, que se quer fazer, respondendo às questões do contexto, da História, da função” (Baeza, 2011, p. 41). Tendo o homem como centro.

Mas o espaço imaginado passa a determinar a jóia, cumprindo-se um desígnio comum à Arquitectura: “A construção é como materializar aquelas ideias” (Baeza, 2011, p. 41). Superfícies oblíquas e tectos traduzem-se num jogo de planos de contorno irregular que integram as formas modulares de peças à escala da mão e em princípios como o recurso a vastas transparências ou vazados que relacionam exterior e interior, a decomposição do interior em volumes que definem uma fronteira entre público e privado, os contrastes entre cheio e vazio, a oposição entre cores quentes, frias e neutras. Procurámos reter imagens destas casas resultantes do cruzamento da memória e da imaginação, ler os seus espaços, explorar o seu fundo poético, relembrando Bachelard, para quem a casa era corpo e alma e o devaneio (1996, p. 26), uma viagem em que nos deixamos conduzir pelo sentimento e que nos pode conduzir a uma leitura mais ampla deste nosso canto do mundo.

À medida que o projecto avança, sentimos uma necessidade paralela de entender a nossa posição enquanto designers. Na sua obra, Alba Cappellieri estuda cenários possíveis que se desenham no presente e num futuro próprio, cenários que não são obviamente herméticos entre si uma vez que considera a multidireccionalidade como um dos factores indispensáveis da contemporaneidade. O primeiro cenário diz respeito ao “Progresso das Manufacturas” que exaltam a artesanalidade da joalharia, não necessariamente de produção manual, mas recorrendo a materiais únicos e preciosos, numa procura de unicidade. Em segundo lugar, emerge a questão da “Beleza” em resposta ao quotidiano que não diz tanto respeito a esta afirmação de distinção mas sobretudo à habilidade da joalharia em conferir beleza a quem a enverga e a transmitir emoção e harmonia a cada cenário do dia a dia, uma joalharia prêt-à-porter (Cappellieri, 2016, pp. 32-34). O Pluralismo é, neste caso, uma evidência ao nível da linguagem e entendimento da preciosidade (p. 35). A terceira tendência consiste no Avant-Craft, fruto das vanguardas artísticas, a chamada joalharia de autor, resultante de uma investigação independente e experimentalista, desconectada da lógica de produção, mercado, comunicação e distribuição, cruzando-se linguagens, materiais e técnicas heterogéneas (p. 35). Por último, assinala-se a Tecnologia que até agora estava distanciada deste universo criativo. Evidenciando-se o potencial de materiais como o titânio e o carbono, tecnologia, sensores e acrescentaríamos a impressão 3D, sem renunciar ao valor do material, à elegância das peças ou à qualidade da sua execução (p. 35). Todos estes cenários estão presentes de modo directo ou indirecto no modo de pensar esta linha específica de joalharia.

Estabelecemos tipologias a desenvolver assim como funções, e uma das premissas fundamentais era a de olhar a jóia enquanto objecto versátil, do mesmo modo que uma solução espacial não tem de impor-se necessariamente ao público. Esta problemática está subjacente no discurso de designers como os irmãos Bourollec que perseguem a ideia de um espaço que funciona como um livro de exercícios e que não se impõe aos utilizadores:

What we are looking for is a different typology, a different kind of body comfort, and an environment that doesn’t confine you to one single pattern throughout the entire day (Monitor, 2010, p. 54).
[O que procuramos é uma tipologia distinta, um género diferenciado de conforto humano, e um ambiente que não o confine a um padrão único ao longo de todo o dia.]

A mutabilidade faz parte da evolução histórica da arquitectura e dos seus interiores se pensarmos no nomadismo inerente à Idade Média, decorrente de guerras territoriais e insegurança, que obrigava a que as casas fossem compostas de peças de mobiliário transportáveis assim como a multifuncionalidade, de que são exemplo as arcas, que cumpriam o papel de transportar pratas, trípticos de oração e panos, servir de banco (bancos arcazes) ou aparador (Carita e Cardoso, 1999, p. 16). Os mesmos pressupostos seriam reinventados pelas vanguardas artísticas do século XX, de que são exemplo os artistas e designers russos que desenvolveram equipamentos transformáveis e versáteis aplicáveis à vida quotidiana e explorados de modo muito particular no âmbito da cenografia pela mão de designers como Liubov Popova (1889-1924) ou Varvara Stepanova (1894-1958). Se a espacialidade é o conceito ou narrativa presente na linguagem das peças apresentadas neste artigo, representativas de uma outra escala, a versatilidade e mutabilidade decorrem da vontade de corresponder de modo flexível a distintas ocasiões, estados de humor ou inclusivamente eventos. Referimo-nos à possibilidade da peça poder não apenas mudar no seu posicionamento e relação com o corpo, mas sofrer mutações. Do mesmo modo que uma casa pode ser uma máquina complexa de funções e também emoções, também uma peça de joalharia pode assumir esta finalidade.

No caso da arte e da moda, destacou-se o papel de artistas como Giacomo Balla (1871-1958) que, em 1914, sugeriu uma série de elementos modificadores no vestuário que permitiam a qualquer um não apenas modificar, mas também inventar um novo fato para um novo estado de espírito (Lee, 2005, p. 115). Com o aparecimento de tecnologias como as fibras inteligentes, o controlo destas mutações passa a poder resultar da aplicação de corrente eléctrica, aquecimento, luz, forças de pressão ou magnetismo, provocando mudanças de forma, cor, tamanho ou de estrutura molecular, podendo ser activas ou passivas e, muitas vezes, usadas no design para melhorar a sua performance ou adicionar novas funções (p. 116). O projecto em causa persegue a ideia do objecto enquanto obra aberta que continua a implicar a participação activa por parte do sujeito na sua transformação intencionalmente manual.

Esta possibilidade de jogo remete-nos, de igual modo, para o sentido de metamorfose que é próprio dos organismos da natureza. Neste sentido, a composição das peças de joalharia desdobra-se em elementos assimétricos que na realidade são também modulares, tal como acontece com as estruturas contínuas da natureza, de carácter evolutivo, embora os elementos modulares na natureza não sejam sempre iguais pois o ambiente condiciona a sua forma e cor, como acontece com uma árvore por exemplo:

Teoricamente, todas as folhas de uma mesma árvore deveriam ser iguais, idênticas, mas isso só aconteceria se pudessem crescer num ambiente privado de influências e de variações. Todas as laranjas deveriam ser esferas semelhantes, mas uma cresce ao sol, outra à sombra, outra entre dois ramos muito juntos, e por isso são todas diferentes (Munari, 1982, p. 130).

Figura 2
Colecção “Espaços possíveis, mas improváveis”: Protótipo final de colar mutável numa possível primeira variante constituída por lâminas azuis, pretas e em cobre, 2016, Mónica Romãozinho. Foto: Mónica Romãozinho.

Nesta exploração poética, procurámos a possibilidade de mutação desenhando em primeira instância um colar. A base nasceu da articulação de módulos de planos de geometria irregular que apresentam calhas onde encaixam peças que sugerem a configuração e curvas de nível, mas que, na realidade, nascem da ideia de um alçado transparente que revela interiores angulosos de um habitat. Estes elementos são considerados modulares pois servem de base para a concepção de outras peças, podendo ser trocados por outros de configuração idêntica, com cores ou acabamentos distintos (ver Figuras 2, 3 e 4). O colar incorpora dois componentes rebatíveis que permitem inseri-lo mais facilmente e seria moldado através de ar quente, apresentando uma curvatura ligeira que se adapta deste modo ao corpo. Foram pensadas tipologias de peças laminares que encaixam nos três pontos do colar, com variantes cromáticas e de acabamento à escolha, suscitando deste modo composições distintas em consonância com o estado de espírito do público alvo. Contudo, optámos por duas variantes principais, podendo ser criadas combinações entre elas: uma mais contrastante e outra, sem dúvida, mais neutra. O colar implicou uma reinterpretação de espaços orgânicos, sobretudo os seus interiores desdobrados em perfis ondulantes e o seu sentido de leveza, numa procura incessante de economia nas suas linhas e planos.

Figuras 3 e 4
Colecção “Espaços possíveis, mas improváveis”: Esquissos e protótipo final de colar mutável numa possível variante constituída por lâminas cinzentas, transparentes e em cobre, 2016, Mónica Romãozinho.
Foto: Mónica Romãozinho.

Pretendemos essencialmente criar uma colecção em aberto que não se esgota nas peças apresentadas, feita de momentos criativos, de oscilações, de pausas, de experimentalismos o que significa o assumir de uma narrativa transversal a todas as peças de diferentes linhas dentro da mesma colecção. Elementos específicos asseguram o fio condutor entre peças que se afastam de qualquer intenção de replicar um desenho unilateral a todas as soluções projectuais.

Exemplo disso são os protótipos desenvolvidos no âmbito de tipologias de brincos (ver Figuras 5 e 6). Na tipologia de brincos, explorámos módulos de base simétricos compostos por camadas ondulantes contentores do próprio espigão, podendo ser usados de modo isolado ou conjugados com bases orgânicas e/ou finas lâminas de cobre (envernizadas devido à oxidação) que determinam um efeito final de assimetria. Por um lado, a sua dimensão contida e respectiva leveza possibilitam uma rotação da peça, permitindo o seu posicionamento em diferentes ângulos. A sua escala mimética é desafiante. Por outro lado, os brincos não assumem um papel tão preponderante numa perspectiva histórica, ao contrário das pregadeiras, colares, anéis ou até mesmo de ornamentos para o cabelo. Mesmo no período dominado pelo movimento Art Nouveau que tanto celebrizou a joalharia, os brincos eram de certo modo desvalorizados, resumindo-se a pequenos cachos ou solitários (Cappellieri, 2010, p. 12). Actualmente, é possível encontrar soluções de brincos assimétricos na chamada alta joalharia, como é o caso dos brincos de pedras preciosas que integram a recente colecção Plaisir Chapêtre Saphir da Dior, sob a direcção creativa de Victoire de Castellane e inspirada nos Jardins de Versailles, em que um quadrado em safira contrasta com uma flor na mesma gema que pontua o bouquet presente no seu par (Liu, 2017, p. 3).

Figuras 5 e 6
Colecção “Espaços possíveis, mas improváveis”: Esquissos de sketchbook e protótipo final da primeira tipologia de brincos desta linha, 2017, Mónica Romãozinho. Foto: Mónica Romãozinho.

Por último, na arquitectura, a resposta projectual parte da volumetria e da relação com o lugar para chegar à escala do manípulo da porta. Todos os elementos são importantes neste processo, independentemente da sua escala ou dimensão. Os brincos funcionam para nós como o pormenor construtivo de cada linha de joalharia, nunca encarado como miniaturização das peças de maior porte.

Figura 7
Colecção “Espaços possíveis, mas improváveis”: Pendente, 2018, Mónica Romãozinho. Foto: Mónica Romãozinho.

Esta última preocupação estaria igualmente presente na concepção de um pendente (ver Figura 7). Este decorre da exploração de um microvolume arquitectónico que simboliza a ideia de habitat orgânico de carácter intimista contido numa caixa envolvente, revestida internamente por uma película de cobre, imagem de uma natureza em dialéctica com o habitat, objecto artificial engendrado pelo Homem. O pequeno volume colorido corresponde a protótipos sobrantes da produção de anéis da mesma colecção. A execução desta ideia de exploração do volume dentro do volume assenta num princípio que é a reutilização de matéria pré-existente mas também derivado das múltiplas leituras que um objecto de PVC aparentemente insignificante pode despertar. Esta solução, pertencendo a uma mesma família, assinala um novo rumo no projecto de investigação.

Ao longo de todo o processo afastámo-nos de qualquer transposição explícita das arquitecturas imaginadas. As formas abstractas revelam-nos ou apontam-nos significados múltiplos, em oposição a qualquer realismo figurativo associado à tradição e, por outro lado, facilitam a procura de economia informativa em todo o conceito projectual, correspondendo esta peça a um culminar de uma intenção de alcançar a essencialidade, a redução do espaço às suas componentes essenciais. Por último, a abstracção estimula a nossa capacidade de imaginar estes vários significados, provocando percepções diversificadas por parte do público.

Metodologia projectual e novas matérias na joalharia contemporânea

Ao contrário do que acontece na última peça, na concepção do colar ou dos brincos, é patente a dicotomia entre intuição e racionalização. Se alguns autores partem para um processo de produção sem planificar detalhadamente a peça, neste caso, dada a nossa experiência em arquitectura, sentimos uma necessidade recorrente de esquissar e construir pequenas maquetas, procurando antever uma solução final (ver Figura 7). O esquisso é transversal a todos os momentos, na medida em que “para um designer, o sketchbook não serve apenas para desenhar, mas também para registar e ordenar os pensamentos, para reunir graficamente informações e para procurar soluções a um problema de design através do processo criativo” (Silva, 2018, p. 3). Recorremos à modelação tridimensional e impressão 3D, por vezes apenas de fragmentos a fim de testarmos encaixes, elementos lineares e de secção mínima, minimizando-se o gasto do material que consiste em PLA (polímero biodegradável designado de poliácido láctico) ao longo do processo. Este projecto permitiu-nos testar espessuras mínimas suportáveis na impressão, folgas, níveis de densidade e qualidade, tempos de impressão.

A fixação das peças de diferentes cores ou materiais do colar foi solucionada através da introdução de calhas inferiores e de elementos superiores que encaixam nas últimas lâminas e que integram suportes de brincos e respectivos travões ancorando-se de modo seguro à base. O colar desdobra-se em três partes viabilizando uma solução mais ergonómica de abertura através de rotação. As dobradiças provocariam alguns problemas pois o orifício operado no PLA que recebe os pequenos eixos metálicos de rotação ia sofrendo algum desgaste o que fazia com que as articulações fossem ficando lassas deslocando-se os pivôs ligeiramente para fora da base do colar. Optámos pela inserção/colagem de cilindros miméticos de PLA capazes de travar este movimento. O par de brincos implicou prever um orifício nos pequenos volumes, onde seria encaixado o espigão hipoalergénico e que seria de seguida tapado por uma peça circular perfurada. A escolha deste plástico decorreu também da sua extrema leveza pois permitiu criar um colar de escasso peso, composto por um total de 20 peças. Como afirma Cicolini, há maior reconhecimento do valor do Design noutras disciplinas nomeadamente no Design de Produto: “You don’t look at a Patricia Urquiola chair and think about the basic materials” [“Nós não contemplamos uma cadeira de Patricia Urquiola a pensar nos seus materiais básicos”] (Garrahan, 2016, p. 1). Também refere precisamente a vantagem de materiais como o plástico e a resina pela sua leveza ao contrário dos metais.

A nossa intenção era de facto trabalhar peças coloridas, autónomas, permitindo jogar com distintas alternâncias, sendo uma opção conceptual, uma vez que já existem impressoras 3D no mercado que possuem mais do que um extrusor, o que permite a impressão simultânea em diferentes cores, solução apelativa para quem trabalha em joalharia. É o caso de Alice Cicolini que explorou a aplicação de um padrão de quatro cores, eventualmente com a técnica Filament Splicing, vias não alcançáveis através das técnicas de esmaltagem. Por sua vez, Georgacopoulos, que colaborou com a anterior designer num projecto comum, pode criar uma ligação ao seu trabalho anterior assente em composições de pérolas, através da concepção de um colar com trinta e cinco componentes distintas, de esferas similares a pérolas, impressas em resina, que se metamorfoseiam em volumes facetados similares a diamantes (Garrahan, 2016, p. 1).

A impressão 3D abriu a porta a todas estas possibilidades, mas não a encaramos como método ideal e exclusivo até porque ainda não foi encontrada uma solução eficaz para a questão da reciclagem dos filamentos. Ao mesmo tempo, a conjugação com métodos tradicionais torna os resultados mais imprevisíveis, alimentando uma liberdade criativa. O cobre foi, portanto, a segunda matéria escolhida pela sua cor avermelhada, pelas mutações que sofre com o passar do tempo e oxidação ganhando tonalidades esverdeadas, pela sua versatilidade e resistência devido ao seu alto ponto de fusão embora só tenhamos recorrido à soldadura nos anéis e numa segunda tipologia de brincos. O corte é manual com recurso à serra de ourives e na dobragem de superfícies vincámos previamente os seus planos com a serra de ourives, seguindo-se um acabamento escovado, mais estimulante ao nível sensorial.

É certo que o PLA é obtido a partir de amido de plantas como o milho, que pode ser biodegradável (em determinadas condições) e que apresenta um baixo impacto ambiental. Contudo, preocupa-nos a curto prazo a questão da reutilização de protótipos experimentais ou de matérias residuais resultantes do processo produtivo em si quer de matérias, de objectos ou peças, guardados ao longo do tempo, deste modo, repensados. Embora estejamos perante uma criação de peças em séries limitadas ou até únicas, temos sempre presentes as estratégias fundamentais que integram o conceito de Ecodesign, decorrentes do contributo de Han Brezet e Carolien van Hemel nos anos 90: selecção de materiais de baixo-impacto; redução do uso de material; optimização de técnicas de produção; optimização dos sistemas de distribuição; redução do impacto durante o uso; optimização da vida útil; optimização do sistema de fim de vida; desenvolvimento de um novo conceito (Vicente, Frazão e Silva, 2012, p. 3). Se nas primeiras peças da colecção apresentadas previamente optámos por um material dominante considerado de baixo impacto, em casos como o pendente, a impressão 3D e a soldadura deram lugar à montagem, ao ready made, ao objet trouvé, prolongando-se a vida útil de outras peças. Procuram-se ou revisitam-se objectos capazes de dialogar com materiais e/ou técnicas tradicionais. As peças não são soldadas, interligam-se por encaixe e são complementadas por pontos mínimos de colagem. O cobre não só pode ser reutilizado como fundido, reentrando no ciclo produtivo. Esta atitude projectual enquadra-se na perspectiva crítica de um grupo cada vez mais vasto de designers e joalheiros que se sentem confrontados com os materiais residuais que o mundo actual oferece e que devem reentrar no ciclo produtivo. É o caso, apenas a título de exemplo, de Kepa Karmona e Marie Pendariès que, num dos seus projectos, procederam à construção de mapas mundi a partir de cartões de crédito, recorrendo à samblagem e aplicação de rebites (parafusos de óptica) e pontualmente a materiais como prata e fio de arame: “Nos gusta usar ready-mades, objetos y materiales reutilizados, y todos los materiales sintéticos mezclados com el metal tradicional. Son los materiales que nos rodean y conforman nuestro medio: una gran ciudad occidental del siglo XXI” [“Gostamos de usar ready-mades, objectos e materiais reutilizados, e todos são materiais sintéticos misturados com o metal tradicional. Estes são os materiais que nos rodeiam e moldam o nosso ambiente: uma grande cidade ocidental do século XX”] (Carmona e Pendairès, 2014, p. 45).

Síntese conclusiva

A partir de componentes impressas em 3D ou de objectos produzidos em série que não oferecem maior utilidade, cruzadas com um material tradicional como o cobre, procedemos paradoxalmente à criação de peças em série limitada de modo a que quem a use sinta que estas comunicam a sua individualidade tal como uma casa, objecto inspirador neste projecto. Por outro lado, trata-se de uma produção que se move pela experimentação e que tem como alvo um público que valoriza as jóias pelo seu desenho singular, pela sua narrativa, enquanto objectos únicos e plataforma de exteriorização do seu carácter independentemente do valor do seu material. Não podemos deixar de olhar para a joalharia contemporânea como uma forma de arte que, em primeiro lugar, realiza o seu autor e que poderá ser apropriada por um público que se revê no contexto contemporâneo, mas cujo estatuto económico não permite aceder a determinadas soluções. Partilhamos a posição manifestada por quem trabalha na área: “Me interrogo acerca del sentido del lujo, qué significa ser joyera en una sociedad tan desigual y cómo crear con mi trabajo un nexo entre realidades tan distintas” [“Questiono o sentido do luxo, o que significa ser joalheira numa sociedade tão desigual e como criar com o meu trabalho um elo entre realidades tão diferentes”] (Gimeno, 2014, p. 85). Este ponto de vista que partilhamos inteiramente, reconduz-nos a um certo romantismo proclamado pelas doutrinas de William Morris (1834-1896) para quem a arte era produzida por pessoas para pessoas: “Made by the people and for the people, as a happiness for the maker and the user” [“Feito pelo povo e para o povo, como felicidade para o criador e para o usuário”] (Pevsner, 1991, p. 22). A estandardização é explorada enquanto solução de coerência formal e não como forma de produção em série uma vez que pretendemos criar peças únicas.

Partilhamos a convicção de designers que se interessam pela jóia enquanto meio de conexão com a sociedade: “Llevar una joya comporta una dualidad fascinante, entre un acto absolutamente público, extensión de la propia identidad, y la intimidad del contacto físico com el objeto” [“Usar uma jóia envolve uma dualidade fascinante, entre um acto absolutamente público, extensão da própria identidade, e da intimidade do contacto físico com o objecto”] (Gimeno, 2014, p. 85). Com esta linha de joalharia ainda em curso, procurámos traduzir uma narrativa: a história de uma arquitectura que se reconcilia com a natureza e que contribui para a (re)invenção da sociedade e do indivíduo ■


REFERÊNCIAS

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SECCIÓN DEBATES
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