Universidade Federal da Paraíba
Universidade Federal da Integração Latino-Americana
Resumo
É crescente o entendimento de que as diversas estratégias do chamado desenvolvimento sustentável não têm sido efetivas no enfrentamento às atuais crises climáticas e ambientais, por estarem vinculadas aos interesses comerciais do capitalismo verde, que monetiza e quantifica os recursos naturais com base nas dinâmicas de mercado. O artigo, escrito em tom ensaístico, transitará pelas relações entre a sustentabilidade de mercado e os argumentos utilizados em pesquisas da área de otimização e performance. Busca assim, explorar o que há entre a ideia de desenvolvimento tecnológico na arquitetura e as epistemologias tecnocientíficas dos países do centro do capitalismo, as quais têm ditado aos pesquisadores e profissionais brasileiros um caminho que desvaloriza conhecimentos tecnocientíficos produzidos fora da lógica da ciência dominante. Dentro disso, como o campo da arquitetura, cada vez mais seduzido por novas tecnologias como os algoritmos de otimização e a IA, têm se posicionado diante desse debate?
Palavras-chave
Design computacional, Otimização, Performance, Sustentabilidade, Crítica, Tecnopolítica
Recebido
30 de abril de 2022
Aceito
20 de marzo de 2023
Introdução
Nas últimas décadas, e sobretudo a partir da pandemia de COVID-19, a acentuação das crises climáticas, sociais e econômicas tem tomado conta das crescentes discussões sobre o rumo global.
Também tem se proliferado por todos os lados a ascensão de temas como desenvolvimento sustentável e a recuperação verde, impulsionados por iniciativas como a Agenda 2030, adotada em 2015 pelos Estados Membros da ONU (Organização das Nações Unidas) para dar continuidade à antiga Agenda de Desenvolvimento do Milênio (2000-2015); pela adesão dos mais diversos tipos de iniciativas, de governos à empresas e sociedade civil aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que vem popularizando termos e ações como a da recuperação verde, economia verde, ecodesenvolvimento e afins desde a ECO-92 [1]. As principais pautas para estes programas são baseadas em baixa emissão de carbono, eficiência no uso de recursos e busca pela inclusão social (((o))eco, 2015).
Dentro disso, é cada vez mais emergente o foco nestas preocupações por arquitetos e urbanistas que já possuem muita proximidade com as temáticas das ciências sociais em diálogo com sua formação técnica e tecnológica. O uso do digital em projetos de arquitetura já está consolidado, mesmo em países de capitalismo dependente, como o Brasil. Em consonância com uma crescente mundial por assuntos tecnológicos, o interesse pela programação, desenvolvimento de algoritmos e sistemas de informação para projetos de arquitetura, urbanismo e gestão urbana, em suas diferentes etapas e escalas, têm sido rapidamente difundido no ensino, mercado e solicitados por secretarias e órgãos públicos.
O projeto computacional (ou design computacional), como é conhecida a área de pesquisa que concentra os pesquisadores, profissionais e estudantes tecno-entusiastas [2], possui dentre suas abordagens, metodologias computacionais que têm sido utilizadas como apropriadas para lidar com complexidades. Uma delas, o projeto orientado ao desempenho, ou projeto orientado a performance, tem sido amplamente difundido como um método capaz de abordar uma visão holística para desempenho ecológico e ambiental de edifícios e cidades (Shi e Yang, 2013; Zhao e DeAngelis, 2019; Li, Liu e Peng, 2020), uma vez que pode integrar dados, metadados, geometrias e simulações, através da associação de algoritmos, modelagem paramétrica, simuladores computacionais e otimizadores matemáticos (Landim, Digiandomenico, Amaro, Pratschke, Tramontano e Toledo, 2017; Landim, 2019).
Sendo a Otimização um ramo da Inteligência Artificial (IA) [3] (Biondi Neto, Becceneri, Demisio, Fávero e Silva Neto, 2009), é possível ampliar a discussão feita neste artigo para não somente o uso de projeto baseado em performance e desempenho, mas também em direção a sistemas mais amplos de IA.
Por um lado, o método tem ajudado arquitetos e projetistas a estabelecer relações de compensação entre objetivos concorrentes e testar seus impactos em muitas alternativas de projetos, ou seja, é possível usar análise de dados para verificar os impactos entre métricas, forma, materialidade, função e desempenhos dentro de um espaço potencial de soluções de projeto. Os métodos de otimização servem aqui para equilibrar uma função objetivo. A função objetivo visa encontrar os valores máximo, mínimo ou a compensação entre eles. Qualquer objetivo precisará ser traduzido em métricas e em uma função matemática para que a metaheurística [4] possa explorar o espaço das soluções viáveis para o problema que se quer testar (Biondi Neto, Becceneri, Demisio, Fávero e Silva Neto, 2009). Dessa maneira, projetos orientados ao desempenho são bastante utilizados pelas engenharias, para encontrar, por exemplo, a melhor forma de resistência de cargas em estruturas de forma complexa, ou, a melhor forma para o desempenho aerodinâmico do cone frontal de um trem de alta velocidade que precisa compensar a menor força de arrasto com a maior estabilidade contra o vento (Digiandomenico, 2019). A maioria destes projetos possuem problemáticas bem definidas e são de ordem explícita e quantitativa.
Por outro lado, o método –já apropriado pelo mercado da arquitetura– tem estimulado nos arquitetos e principalmente nos pesquisadores, a percepção de que é possível criar a melhor alternativa de projeto possível para resolver um problema. Hoje, em suma, a área é inundada por projetos que respondem às métricas de eficiência energética em edifícios e cidades, além de demandas solicitadas por empresas de certificação verde (Zhao e DeAngelis, 2019). Em problemas de arquitetura, geralmente conhecidos por serem de ordem objetiva, subjetiva e multiobjetivo, qualquer decisão de equipes de arquitetos, clientes, investidores e demais envolvidos, estão implícitos no próprio processo de projeto, suas métricas e objetivos. Pesquisas mais recentes têm se deslocado em apontar que, em vez de usar a otimização para obter uma alternativa de projeto considerada ideal, a otimização deve ser usada como um meio para refletir sobre o desenvolvimento conceitual, ou conhecer melhor o espaço de projeto (Wortmann e Schroepfer, 2019). As aplicações destes algoritmos têm indicado que a ordem de problemas da área não pode ser definida pela busca automatizada de uma alternativa única de projeto, mesmo quando utiliza métodos de otimização multi-objetivo (Wortmann e Schroepfer, 2019). Ainda que reconheça a não-objetividade dos problemas que a arquitetura tenta contribuir com soluções, profissionais e pesquisadores parecem se afastar da discussão dos problemas em si, sem envolver a priori um método computacional. Algo como inverter as demandas, isto é, utilizar tecnologia computacional apenas porque temos um problema a resolver ao invés de decidir se para resolver um problema será necessário ou não utilizar tecnologia computacional.
Com a ajuda de gráficos, dados e algoritmos, se atesta a falsa premissa de que a melhor alternativa possível de um projeto sustentável é qualquer uma que a equipe tenha chegado através de tais métodos, deixando invisibilizadas outras vias possíveis para resolução dos problemas que compõem as atuais pautas climáticas e ambientais. Não obstante, estas tecnologias têm sido extensivamente citadas como ferramentas neutras, exatas e portanto, usadas pró-sustentabilidade, passando assim, a validar qualquer projeto que as utilize.
Este artigo argumenta que este caminho tem sido impulsionado por uma percepção do positivismo tecnológico dominante e um entusiasmo acrítico sobre a pesquisa, o ensino e a aplicação dessas tecnologias. Parte disso, tem relações com a aparente manutenção de um status quo, onde é possível se adequar às pautas urgentes, sem questionar as estruturas mais profundas causadoras dos próprios problemas ambientais e sociais. O objetivo deste artigo é traçar então, uma caminhada pelo pensamento dominante sobre tecnociência, a fim de evidenciar que desenvolver tecnologias convencionais certamente não resolverá problemas ambientais e sociais baseados em territórios; que não é possível falar em resoluções ambientais e sociais sem justiça social e reparação histórica aos povos sistematicamente marginalizados da produção e uso tecnológico; e que existem outras produções técnicas (ou de techne) e produções de mundo, as quais é preciso estabelecer ou fortalecer um diálogo simétrico e cooperativo. Em suma, refutamos a ideia de que a solução para problemas sociais e ambientais pode ser alcançada através do desenvolvimento de mais tecnologia hegemônica e de mercado.
A normalização da sustentabilidade de mercado e a confiança tecnológica
O que se tem chamado de desenvolvimento sustentável na arquitetura, está mais atrelado ao capitalismo verde. A natureza passa a ser valorada monetariamente, por um lado, ao conferir a preocupação ambiental como uma forma de valorização do capital (através do marketing); e por outro, ao se manter confortavelmente em diálogo com interesses mercantis que tem ditado em que nível o sistema econômico neoliberal aceita negociar com as crises ambiental e climáticas atuais:
É assim que a natureza, de externalidade negativa, torna-se um novo e cada vez mais promissor ramo de negócios (de créditos de carbono a novas energias). E trata-se não apenas de constituir um mercado da preservação, mas também um “mercado da contaminação”, por meio da venda de licenças de poluir, como recomenda o Banco Mundial e propõe o Protocolo de Kyoto (Arantes, 2010, pp. 287-288).
Exemplos bastante ilustrativos desta lógica estão presentes em velhos conhecidos da arquitetura de mercado, como os selos de sustentabilidade do Green Building Council [5], que considera uma edificação sustentável, aquela que consegue reduzir o consumo de energia por metro quadrado em relação a um edifício que não se preocupa com essa métrica durante o projeto de sua arquitetura.
Esta constatação também pode ser feita de forma iconográfica ou semiótica. Imaginemos esta imagem. Um homem branco, entre quarenta e cinquenta anos, vestindo terno e gravata, rega uma muda de árvore plantada num vaso de concreto na cobertura de um arranha-céu, com vista para o Empire State Building, ao fundo [6]. Não à toa, o edifício é propriedade da Empire State Realty Trust, uma das maiores empresas do mercado imobiliário de Nova Iorque, que vende valorização comercial de espaços construídos através do casamento entre espaços modernizados e tecnológicos com argumentos da sustentabilidade e eficiência energética dos edifícios. Esta lógica de crescimento urbano já é uma realidade conhecida nas capitais brasileiras.
Certamente, não será este desenvolvimento sustentável, populando os centros corporativos e residenciais das cidades de edifícios envidraçados ou promovendo certificações verdes para agrupamentos urbanos de tipo condomínios, que permitirão uma extensão de prazo para a vida humana na Terra. A cooptação da sustentabilidade pelo mercado imobiliário através da troca mercantil se dá através do que o filósofo e professor brasileiro Marcos Barbosa de Oliveira (2004) chama de Princípio de Maximização do Ganho, onde “cada sujeito envolvido na operação procura obter o máximo daquilo que recebe em troca do mínimo que cede em troca” (p. 250). No caso destas certificações, a maximização é a valorização do metro quadrado imobiliário, e o mínimo que cede em troca é a visão facetada e reduzida do que é o problema ambiental causado pela expropriação da vida, enraizada no modo de viver ocidental. Essa visão de sustentabilidade presente na arquitetura contemporânea, atrelada primordialmente aos modos dominantes de produção da cidade, do dinheiro e da visão de mundo tecnológica, vê na produção de artefatos ou edifícios inovadores a maneira mais conveniente em cooptar as demandas ambientais atuais, sem parar de produzir, explorar e consumir como fazem:
Como já constatara David Harvey, as intervenções urbanas tem se especializado em construir lugares exclusivos capazes de exercer um poder de atração sobre os fluxos de capital. […] Isso não significa produzir cidades melhores e mais justas, mas construir obras e lugares que são imãs magnetizadores de renda (Arantes, 2010, p. 17).
A presença de um entendimento facetado sobre o que é a natureza, vindo do predomínio humano sobre outras espécies ou coisas naturais, está presente na história em todo o processo de criação de um projeto de modernidade ocidental. Em O Homem e o Mundo Natural (1989), Keith Thomas aponta que é nos fundamentos teológicos da Inglaterra, no século XV, que tomam força as ideias de que o mundo fora criado para o bem humano, e que a natureza existia unicamente para servir os interesses deste grupo.
Hoje, o que é que se entenda por natureza, tem sido colocado num valor cientificista e antropocêntrico. Como ela será mobilizada e acionada em favor a esse projeto de modernidade que estamos empenhados em construir? Como essa natureza nos proporciona vantagens para acionar esse projeto de modernidade?
As análises de desempenho e algoritmos de otimização para projetos de arquitetura têm andado de mãos dadas com esta visão de sustentabilidade. A área busca operacionalizar o balanceamento entre objetivos concorrentes, garantindo que a função, estruturas e estética do edifício (ou qualquer outro elemento de projeto) permaneçam correspondentes a seus níveis de desempenho em métricas como análises energéticas, qualidade do conforto térmico de ambientes internos, iluminação natural, qualidade de vistas para o ambiente externo, uso de materiais, entre outros. É através do desenvolvimento e conexão entre softwares de análises com modelagem paramétrica, programas de modelagem 3D, linguagens de programação e desenvolvimento de algoritmos que pesquisadores e profissionais de projeto têm investigado as potencialidades de exploração e aplicação da computação na área da arquitetura, engenharia, construção e mais recentemente no Brasil, no planejamento e gestão urbana, implementando ferramentas de automação tanto para o mercado de incorporadoras, como para administrações públicas.
O otimismo depositado nesta metodologia como capaz de resolver problemas complexos contemporâneos e de sustentabilidade é quase uma unanimidade entre os artigos da área publicados anualmente nos congressos de design computacional no mundo, sobretudo, os que acontecem fora da América Latina [7]. Embora reconheçam que há uma profunda crise em curso que precisa protagonizar os discursos, poucos arquitetos tecno-entusiastas, ou arquitetos programadores têm conseguido escapar da sedução tecnológica ou das confusões mentais causadas quando confrontados pela intersecção das fronteiras do progresso capitalista, preservação ambiental e crise social. A aposta é que desenvolver estas tecnologias na arquitetura, como algoritmos de otimização e inteligência artificial, podem fornecer soluções ótimas para projetos e resolver demandas da sociedade. Por existir uma correlação entre complexidade pós-moderna e a capacidade computacional em resolver problemas complexos, há uma aparente possibilidade de que a complexidade social-urbana pode ser resolvida pela tecnologia, única ferramenta capaz de lidar com o balanceamento das mais diversas demandas, traduzidas quantitativamente através de dados. Não é só no Brasil, tampouco na tecnologia aplicada à arquitetura que isso acontece:
Menções a “tecnologia”, “inovação” e “IA” continuamente e consistentemente trazem consigo uma advocacia quase religiosa, confiança cega e muito pouco ou nenhum envolvimento crítico. Como “tecnologia”, “IA” e “inovação” ocupam o centro do palco, também estão engajados atores que buscam monetizar, quantificar e capitalizar todos os aspectos da vida, geralmente a qualquer custo. (Birhane, 2020, p. 171).
A constatação acima é feita por Abeba Birhane, cientista cognitiva etíope que observa esta mesma atmosfera na conferência CyFyAfrica 2019, a Conferência de Tecnologia, Inovação e Sociedade, uma das maiores conferências anuais da África, acontecida em Tânger, Marrocos. Segundo Birhane (2020), o evangelismo tecnológico esteve presente, impulsionando a corrida para acelerar o continente através da implementação de ferramentas de aprendizado de máquina, enquanto discussões acerca dos problemas decorrentes destas tecnologias são “enterradas sob a empolgação” (p. 172).
Transitaremos para o campo da tecnociência e uso de dados de maneira mais expandida, a fim de trazer para esta discussão o que tem ficado de fora.
Outras ciências frente ao pensamento tecnocientífico dominante
A ciência moderna se desdobrou como um modelo de racionalidade que privilegia o como funciona das coisas em oposição a qual o fim das coisas. Boaventura de Sousa Santos (1987, p. 17), sociólogo do direito português, aponta que ela se desenvolveu com base na revolução científica no século XVI (com Copérnico, Galileu, Kepler e Newton), passou por um período de transição técnica e social no século XVIII por via da ordem científica emergente em oposição aos “cálculos esotéricos” dos séculos anteriores, e rumou ao estágio fundamental do pensamento científico que ainda influencia o início do século XXI. Até então, esta ordem científica ainda era desenvolvida basicamente no domínio das ciências naturais. Foi no século XIX que o estabelecimento da maioria das bases do campo teórico que ainda hoje nos movem, se estendem às ciências sociais:
A partir de então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos). Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas (de Sousa Santos, 1987, p. 21).
É um movimento muito específico do pensamento, com uma determinada lente de interpretação do mundo, em suma baseada nos paradigmas da ciência européia do século XVII, que ainda hoje influenciam a cultura de valores das decisões ocidentalizadas frente aos assuntos da ciência, tecnologia e sociedade.
Outro movimento de base que estrutura esse pensamento, retomando a ideia sobre os fundamentos teológicos da natureza de Thomas (1989) citada anteriormente, é a separação entre as noções de natureza e cultura, reunidas e discutidas pelo professor de ciências sociais Felipe Süssekind (2018). Na filosofia moderna, “civilização humana” é uma expressão sinônima de conquista a natureza, enquanto “condição animal”, legitima a inferiorização de qualquer pessoa, ser ou coisa que esteja mais próxima a uma condição de natureza, classe essa que precisa ser dominada ou tutelada: “o animal designa a condição oposta à condição humana, ou seja, designa a negação ou ausência daquilo que se convenciona como sendo a singularidade humana: razão ou inteligência, sentimento, consciência de si e da morte, linguagem, sentimento moral, entre outros atributos” (Süssekind, 2018, p. 245). Ao separar a natureza da cultura, se produz a ideia de um acesso privilegiado ao mundo, por meio do pensamento científico: “A universalidade da natureza seria, nesse sentido, o argumento que permitira aos ocidentais reduzirem as outras culturas a sistemas de representações ou de crenças, enquanto concebiam a sua própria cultura em termos objetivos e universais” (Süssekind, 2018, p. 242).
Esta racionalidade como um modelo global possui impacto significativo para dar luz sobre o depósito de confiança, à priori, realizado à tecnologia como ferramenta resolutora de problemas de ordem social e ambiental, sem perceber sua própria influência no processo histórico que nos trouxe até aqui. Essa visão instrumentalista que enxerga a tecnologia como neutra e controlável pelo homem é a filosofia espontânea do pensamento ocidentalizado (Dagnino, 2014).
Em 1841, durante uma expedição ao rio Níger, financiada pela Sociedade Defensora da Extinção do Comércio de Escravos e da Civilização da África (com o objetivo de interferir na atividade dos traficantes de escravizados), o contra-almirante inglês Willian Allen (1792-1864) notou que o piloto camaronês de seu barco a vapor (a quem chamava de Glasgow), conseguia entender mensagens quando tambores eram ouvidos nas vilas ao longo do rio: “o bater do tambor podia chegar a uma distância de aproximadamente dez quilômetros. Transmitidas de vilarejo em vilarejo, as mensagens podiam percorrer mais de 150 quilômetros em questão de uma hora” (Gleick, 2013, p. 14). Allen custou a acreditar que era possível entender algo vindo do batuque, como conta James Gleick (2013):
“Muitas vezes ficamos surpresos, [escreveu Allen à corte, em 1841] ao perceber o quanto o som do trompete é bem compreendido em nossas evoluções militares; mas isso fica muito aquém do resultado obtido por aqueles selvagens incultos.” Aquele resultado era uma tecnologia muito desejada na Europa: comunicação de longa distância mais rápida do que qualquer mensageiro, fosse a pé, fosse a cavalo (p. 14).
No mesmo ano, o estadunidense, residente na França, Samuel Morse estava trabalhando em um sistema de representação codificado de letras, algarismos e sinais de pontuação, que pudessem ser transmitidos como mensagens através de pulsos (sejam elétricos, mecânicos, ou de sinais de rádio). Morse trabalhou por anos, aproximadamente entre 1835 a 1843 no telégrafo elétrico com fios. A tecnologia foi utilizada como meio de comunicação na Primeira Guerra e proibida com pena de prisão a quem utilizasse para transmissão de mensagens particulares por quase um século (Holzmann e Pehrson, 1995). Assim, até a metade do século XX, a analogia mais óbvia para os europeus, parecia indicar que os tambores só poderiam ser um tipo de codificação de linguagem escrita análoga ao telégrafo. Foi a partir de trabalhos de observação de missionários britânicos de 1934 e 1949 junto às pessoas Bantu da África Central e do Congo, que puderam perceber que o batuque era uma metamorfose da fala, um sistema de comunicação: “os percussionistas não estavam sinalizando, e sim falando: eles falavam num idioma especialmente adaptado para os tambores” (Gleick, 2013, p. 19). A linguagem dos batuques não era orientada pelo tipo de ciência e pragmatismo que orientava a visão de mundo dos europeus.
Conhecimento e ciência não-extrativista
As ideias que precederam a observação e a experimentação na ciência moderna da época do capitão Allen, eram as ideias matemáticas, as quais fornecem instrumentos de análise e a lógica como modelos de representação do mundo:
Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou (de Sousa Santos, 1987, pp. 27-28).
Esta filosofia da tecnologia espontânea no ocidente toma forma e força na história com a perspectiva determinista presente nas teorias da modernização (Feenberg, 1991). Segundo o filósofo estadunidense Andrew Feenberg, o determinismo argumenta que a tecnologia determina a sociedade, ou seja, que a infraestrutura tecnológica determina a superestrutura social. A partir da noção de uma história linear, todas as sociedades modernas teriam que convergir no mesmo modelo de desenvolvimento tecnológico, pois não haveria nenhuma outra maneira de ser moderno fora dos moldes das estruturas familiares, políticas, religiosas, literárias, alcançada pelas sociedades mais avançadas. Este mesmo princípio epistemológico orienta a visão da teoria social tradicional sobre os modos de vida dos povos originários da América pré-colombiana, por exemplo.
As sociedades indígenas da região amazônica são consideradas caçadores-coletores. Caçadores-coletores são aqueles que obtêm seu sustento através da caça de animais e coleta de alimentos naturais. A teoria social tradicional acredita que o ambiente tropical da floresta não poderia oferecer alimentos suficientes para uma população se sustentar, se não houvesse agricultura:
O que sabemos desde a década de 1970, através dos trabalhos etnográficos, é que tem muitos grupos que chamamos de caçador coletor, mas a base principal da alimentação é coleta. A coleta envolve normalmente um conhecimento e uma interação com o ambiente do entorno de maneira muito íntima, muito próxima, para saber o que coletar e o que não coletar, onde está este recurso. Não se aprende isso do nada, a partir dos trabalhos da etnografia, sabemos que isso é passado de geração em geração (Bueno, 2017, transcrição nossa).
Essa crença de que as populações caçadoras-coletoras estão em um estágio anterior de desenvolvimento por não terem passado a agricultores possui relação íntima com a visão unilinear da história:
Temos uma visão da história como um processo em várias etapas. Fomos durante milênios da idade da pedra, éramos caçadores coletores, inventamos a agricultura, começamos a viver em aldeias e depois em cidades, aí vem a revolução industrial e estamos aqui hoje no antropoceno, uma época de profunda crise ambiental e social no planeta. Essa narrativa meio canônica que funciona bem para vários lugares do mundo, como Europa e Oriente Médio, não funciona bem para as Américas (Neves, 2017, transcrição nossa).
Eduardo Góes Neves, antropólogo e professor brasileiro, nos conta que é preciso levar em consideração o ambiente. O desenvolvimento da agricultura faz sentido em contextos muito sazonais, de produção mais restrita, como é o caso do crescente fértil do extremo oriente-médio neolítico. No entanto, em regiões como os trópicos, essa transição de caçador-coletor para agricultor não faz sentido, e por isso, nunca ocorreu. A agricultura, como conhecemos, está mais relacionada aos sistemas de produção alimentar de povos sedentarizados, que plantam o alimento, colhem-no, e buscam outro local, caso as condições de cultivo tenham diminuído. A questão das culturas ameríndias é terem conseguido absorver recursos do ambiente, sem exauri-los.
Tem se tornado um consenso na arqueologia brasileira que a Amazônia não é uma floresta intocada, como foi considerada durante a maior parte do século XX. Trata-se de uma floresta antropogênica, plantada pelos humanos que ali viveram, e ainda vivem: “seus sistemas alimentares foram esquecidos, ignorados ou destruídos. As fazendas e propriedades dos colonos brancos agora em sua maioria se transformam em cidades ou se transformam em sistemas industriais de monocultura cujos produtos alimentam animais e automóveis ou são ingredientes de alimentos e bebidas ultraprocessados” (Clement, Denevan, Heckenberger, Junqueira, Neves, Teixeira e Woods, 2015, p. 694).
Estamos às voltas com estudos que analisam a experiência antropológica, justamente por serem estes que ajudam a evidenciar à sociedade científica um estatuto epistemológico de povos originários como equivalente ao do pensamento ocidental (Lévi-Strauss, 1989, apud Süssekind, 2018). Ainda como observa Süssekind, o estudo das culturas apresenta outros mundos possíveis a partir dos quais possam ser repensados os valores e modelos da cultura ocidental que tem nos dirigido para as dimensões da crise ambiental e civilizatória que estamos. Neste sentido, Ailton Krenak, um dos mais importantes pensadores brasileiros é, desde muito tempo, um dos maiores comunicadores deste diálogo: é necessário “animar uma colaboração em que comunidades urbanas, periurbanas e comunidades que estão nas florestas, possam trocar experiências e produzir imaginários para inspirar no agora alguma permeabilidade, alguma fluidez nos muros das nossas cidades” (Krenak, 2021a). É neste sentido que ele afirma que os danos da era antropocêntrica não são acidentais, são escolhas (Krenak, 2019).
No texto Eurocentrismo e seus avatares: os dilemas da ciência social, o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein (2002, p. 205) revisa as alegações de eurocentrismo feitas à ciências sociais, uma vez que esta possui suas estruturas institucionais originárias no sistema-mundo moderno, e tem o eurocentrismo como “constitutivo da geocultura do mundo moderno”. Uma destas imposições situa-se na teoria do progresso:
O progresso se tornou a explicação fundamental da história do mundo e a base racional de quase todas as teorias de etapas. Mais do que isso, se tornou o motor de toda a ciência social aplicada. Dizia-se que estudávamos ciência social para melhorar a compreensão do mundo social, pois assim seria possível acelerar o progresso de maneira mais judiciosa e segura em toda a parte (ou pelo menos remover os obstáculos em seu caminho). As metáforas de evolução ou desenvolvimento não foram apenas tentativas de descrever; foram também incentivos para prescrever (Wallerstein, 2002, p. 213).
O autor observa que a história da Europa, ou o que quer que a Europa tenha feito, tem sido analisada incorretamente e suas conquistas extrapoladas. É necessário haver “um balanço cuidadoso do que foi alcançado pela civilização capitalista durante sua vida histórica, e avaliar se os créditos são realmente maiores que os débitos” (Wallerstein, 2002, p. 219). De Sousa Santos (2020) concorda com Wallerstein ao argumentar que esse universalismo europeu não existe, e complementa que em seu lugar, o que ocorre é “uma experiência fundacional eurocêntrica, que devido ao poder econômico e militar dominante que detém, se impôs a outras experiências fundacionais existentes no mundo, assegurando assim a prerrogativa de se proclamar universalmente válida” (de Sousa Santos, 2020, p. 67).
Em sua obra mais recente, Boaventura de Sousa Santos delineia o conjunto de convicções e de valores que definem as ideias cânones do pensamento ocidental, baseado em Warren (2009, apud de Sousa Santos, 2020). O autor alerta que não existe uma epistemologia do Norte única, no entanto, mesmo as várias existentes compartilham alguns pressupostos básico em comum:
Prioridade absoluta dada à ciência como conhecimento rigoroso; rigor, entendido como determinação; universalismo, entendido como sendo uma especificidade da modernidade ocidental e referido a qualquer entidade ou condição cuja validade não é dependente de qualquer contexto social, cultural ou político concreto; verdade, entendida como a representação do real; uma distinção entre sujeito e objeto, o que conhece e o que é conhecido; a natureza enquanto res extensa; a temporalidade linear; o progresso da ciência por via das disciplinas e da especialização; a neutralidade social e política como condição de objetividade (de Sousa Santos, 2020, p. 24).
É crescente as análises deste balancete negativo, não somente entre autores de perspectiva amefricana e decolonial, mas também apontado amplamente por movimentos sociais, povos e comunidades originárias, que não consideram o sistema capitalista como uma evidência do progresso humano:
Diz-se frequentemente que o que é diferente é o desenvolvimento do pensamento científico. Mas parece claro que isto não é verdade, por mais esplêndidos que sejam os avanços científicos modernos. O pensamento científico é muito anterior ao mundo moderno e está presente em todas as zonas civilizacionais mais importantes (Wallerstein, 2002, p. 220).
Essa reapropriação do que pode ser científico, ou como possa ser chamada essa manifestação, está presente em outros tempos e culturas, como no sistema de Divinação Ifá (Alamu, Aworinde e Isharufe, 2021), na ciência Kemética (Diop, 1983) e nos saberes sobre a ecologia da vida presente nos diversos pensamentos dos povos originários ameríndios.
Em seu trabalho recente, o filósofo chinês Yuk Hui elabora uma estratégia geral para a reapropriação das tecnologias por meio da afirmação da multiplicidade irredutível das tecnicidades. O autor propõe um trabalho filosófico que tenta articular a técnica para além da tradição herdada do humanismo iluminista ocidental (Hui, 2020, p. 89).
A tecnociência em disputa
O predomínio das ideias de progresso, tecnologia, eficiência a serviço do sistema-mundo moderno (colonialista, capitalista e patriarcal) são tão fortes no imaginário e visão de mundo ocidental que levam à confusões sobre os direcionamentos necessários frente às crises, mesmo quando a necessidade de repensar o capitalismo começam a se tornar um consenso até mesmo entre os defensores do mercado.
Em maio de 2011, a antropóloga e professora turca Gökçe Günel (2019), viajava de táxi entre a cidade de Masdar em Abu Dhabi, para Dubai. Günel estava no local para realizar uma pesquisa de campo sobre as emergências das infraestruturas de tecnologia limpa e energias renováveis que estavam acontecendo desde maio de 2006, ano de fundação da empresa Masdar –que significa fonte em árabe– amplamente conhecida como Masdar City, uma ecocidade futurista. O projeto da cidade, planejada pelo escritório de arquitetura londrino Foster + Partners, estava situado para servir como um pólo para o setor de energia renovável e tecnologia limpa dos Emirados Árabes Unidos (Günel, 2019, p. 3). Para além da cidade, Masdar também operava pelas empresas Masdar Power, Masdar Carbon e Masdar Capital, expandindo suas operações na tentativa de manter Abu Dhabi como um player do setor de energia, ao tentar facilitar a diversificação econômica do Emirado, uma vez que suas reservas de petróleo possam secar ou se tornarem menos valiosas (Günel, 2019). Esses projetos são financiados pela Mubadala Investment Company, uma empresa de investimentos de propriedade de Abu Dhabi.
Dividindo o mesmo táxi, por razões de mera coincidência segundo a autora, estava Marco, um homem equatoriano de um pouco mais de trinta anos que trabalhava como consultor ambiental para a Masdar Carbon. O ponto de partida para a interação entre os dois se deu ao observarem a ornamentação paisagística da estrada. Mesmo em uma paisagem desértica, haviam nos canteiros tamareiras, grama verde e flores silvestres, que se estendia por quase cinquenta quilômetros da estrada que liga Abu Dhabi a Dubai. A decisão paisagística parece estar em consonância com o ideário artificial e deslocado de seu ambiente, que permeia a expansão de Dubai –impulsionada pela bolha imobiliária– desde a construção de ilhas artificiais em forma de mapa-múndi e palmeiras na costa da cidade.
Embora não houvesse estimativas claras de quanta água era necessária para essas práticas de paisagismo, acreditava-se amplamente que o governo de Abu Dhabi gastou uma quantidade extraordinária de recursos para manter essas estradas verdejantes, quase tanto quanto o orçamento militar para o Emirado. Eles usaram água dessalinizada para cuidar das plantas importadas. Quando essas plantas morrem, elas rapidamente são substituídas por novas, dentro de questão de horas. A vegetação estava ainda mais cuidada ao redor da cidade de Masdar devido à construção de um aeroporto VIP para membros da família governante de Abu Dhabi (Günel, 2019, p. 3).
Marco rapidamente identificou, a partir de seus conhecimentos de etnobotânica, que as plantas estavam rejeitando sua nova localização. Ao engatar uma conversa sobre sua visão cosmológica, ele compartilhou suas influências por escritores que combinam espiritualidade com descobertas científicas, como Fritjof Capra, Carlos Castañeda, Judith Bluestone Polich, Richard Evan Schultes, Albert Hoffman e Ken Wilber. Muito desse percurso foi despertado após uma experiência de expansão de consciência, quando tinha dez anos, junto a seus pais, através da yage –ou ayahuasca– uma medicina dos povos indígenas da Amazônia. Influenciado por suas últimas leituras, ele acreditava que os humanos logo despertariam para uma compreensão de como animais, plantas e matéria têm alma. No entanto, curiosamente, Marco compartilha uma junção de sua visão ontológica com os projetos tecnológicos baseados no mercado de Masdar: “Ele acreditava que um sistema baseado no mercado seria um mecanismo eficaz para suspender as diferenças entre humanos, animais, plantas e dióxido de carbono: todos os seres seriam resgatáveis em dinheiro, equivalentes sob um denominador comum” (Günel, 2019, p. 6). Em sua pesquisa de campo, Günel identifica em profissionais de energia renovável e tecnologia limpa de diferentes setores um núcleo similar, destacando a forma como, para estes, “o meio ambiente era uma parte sexy da economia” (p. 12). O arquiteto brasileiro Pedro Fiori Arantes (2010) analisa este tipo de ligação como fruto de um “mosaico de ideias das classes dominantes”: “o discurso-realejo do ‘desenvolvimento sustentável’, promete a conciliação entre progresso capitalista e preservação ambiental. […] Nele, a natureza é valorada monetariamente (apesar de não ter valor econômico intrínseco) e precificada de forma mercantil, ou seja, adquirindo a forma-mercadoria” (p. 287).
A moral desta história reside no fato de que apesar de sua contribuição ontológica local, a defesa da tecnologia de mercado como solução para mudanças climáticas se baseia primordialmente numa contradição. O modelo econômico capitalista e suas lógicas de expropriação da vida na terra tem sido primordialmente apontado como a razão da diminuição dos recursos básicos e acelerador da vulnerabilidade climática. Esta sedução tecnológica se estrutura na ideia de que é possível “saltar para um futuro onde os humanos continuam a desfrutar da complexidade tecnológica sem questionar relações sociais, políticas e econômicas” (Günel, 2019, p. 10). A autora completa:
Ele [Marco] sabia que os humanos precisavam repensar o capitalismo, mas não sabia exatamente como. Ao se envolver com as condições de escala planetária, bem como com as realidades cotidianas, as pessoas em Masdar experimentaram deslocamentos, sobre os quais muitos deles falaram com paixão, ansiedade e confusão. Ao pensar em seus desafios, eles iam e voltavam entre concepções abstratas do planeta e as realidades cotidianas da vida social e profissional, habitando consistentemente conjuntos de questões e conflitos não respondidos (ou talvez irrespondíveis) (p. 13).
Tal imbróglio, causado por concepções abstratas do planeta e da vida social pode ser melhor compreendida com a ajuda de Ailton Krenak. Para ele, a questão não é necessariamente fugir à lógica do progresso (uma vez que trata-se de um termo em constante disputa): “é ter consciência dela e fazer as escolhas cabíveis, do tamanho do mundo que nós herdamos dos nossos ancestrais” (Krenak, 2021b). Krenak considera aqui a ancestralidade de uma maneira mais realista:
O entendimento que muita gente tem da ancestralidade é mística, não é prática, não é real, não tem sentido com a produção de saberes, a produção de vida, a experiência mesma aplicada ao cotidiano. Para ela ter consequência social, tem que ser percebida como a valorização das experiências das gerações que nos antecederam. Das escolhas erradas e certas que foram feitas. Servir para a gente aprender sobre como compartilhar o mundo, entendendo que uma geração recebe da anterior o mundo que nós vivemos agora e que está embalando o mundo das futuras gerações. Tudo tem consequência. A relação de tempo presente, passado, precisam ser vividas mais do que entendidas (Krenak, 2021b).
O centro da discussão trazida através de Marco, consultor da Masdar Carbon, é rotulado pelo que Günel (2019) chama de Ajustes Técnicos e o que Feenberg (2002) chama de Códigos Técnicos. Embora a autora não tenha Feenberg em seu referencial teórico e nem mesmo outros autores em comum, ambos conceitos podem ser colocados em diálogo. Para ela, Ajustes Técnicos é uma abordagem onde especialistas podem produzir produtos ou artefatos inovadores através da tecnologia convencional para resolver problemas, ao invés de abordarem os problemas pela perspectiva da ética, moralidade e política. Estes ajustes promovem a crença na possibilidade de sustentar um status quo ao manter os valores dominantes existentes, enquanto inventam correções técnicas orientadas ao mercado. Em Masdar, os ajustes técnicos são definidos pela autora como os edifícios verdes, pesquisa em energias renováveis e tecnologia limpa, novas maneiras de pensar moedas ou sistemas de trocas (moeda Ergos), designs inovadores para veículos e novos mecanismos de governança global.
Para Feenberg, Códigos Técnicos “envolve a materialização de um interesse particular no âmbito de um conjunto de soluções para um tipo geral de problema que seja tecnicamente coerente com esse interesse” (Feenberg, 2002, apud Novaes e Dagnino, 2004, p. 194). A racionalidade técnica que dirige ambos conceitos (Ajustes Técnicos e Códigos Técnicos) são uma intersecção entre a ideologia e a técnica, e portanto, não é neutra.
Para Feenberg (2002), a tecnologia não é neutra porque incorpora valores da sociedade industrial; especialmente os daquelas elites capazes de incorporar (ou traduzir) seus valores (ou reivindicações) na técnica. Justamente por envolver questões políticas, é um importante veículo para dominação cultural, controle social e concentração do poder industrial. Assim, a racionalidade técnica seria também racionalidade política: os valores de um sistema social específico e os interesses da classe dominante se instalam no desenho das máquinas e em outros supostos procedimentos racionais (Novaes e Dagnino, 2004, p. 193).
Vejamos o caso do movimento intelectual que promoveu a razão e a racionalidade, o Iluminismo. Para além de ser um movimento que visava que a realização da humanidade e de valores universais através da luta contra a superstição seria feita pela ciência e pela tecnologia, era também um movimento essencialmente político (Hui, 2020). O desenvolvimento das tecnologias náuticas, militares e cartográficas, por exemplo, permitiu aos poderes europeus colonizar o mundo, o Iluminismo era um processo de reorientação do desenvolvimento da tecnologia moderna, que por sua vez, foi sua base (Hui, 2020, p. 78).
A tecnologia moderna sincroniza histórias não ocidentais no eixo de tempo global da modernidade Ocidental. Simultaneamente oportunidade e problema, o processo de sincronização permite que o mundo desfrute da ciência e da tecnologia, mas também o lança em um eixo de tempo que, animado pelo humanismo, está se movendo em direção a um fim apocalíptico, seja na forma da singularidade tecnológica (a “explosão da inteligência”), seja na forma do surgimento de uma “superinteligência” (Hui, 2020, p. 85).
A partir dessa constatação, o autor nos lança a pergunta: “como um diálogo transversal desse tipo seria possível quando o mundo inteiro foi sincronizado e transformado por uma força tecnológica e gigantesca?” (p. 18). Ele nos dá uma pista ao indicar que o confrontamento ao conceito de tecnologia em si –a partir das perspectivas de múltiplas cosmotécnicas– fomenta uma diferenciação epistemológica e ontológica sobre o tema, essencial para combater a visão do progresso tecnológico rumo a singularidade, ao transumanismo e a governança por IAs (Hui, p. 46), todas elas, perspectivas neo-reacionárias e homogêneas que têm sido apresentadas como única opção a frente.
O tensionamento proposto neste texto, entre o desenvolvimento tecnológico na arquitetura e seu diálogo crítico com os desenvolvimentos ambiental e social nos leva a necessidade de prosseguirmos com investigações sobre iniciativas alinhadas a esse diálogo transversal. É necessário haver uma rearticulação do que entendemos como desenvolvimento ou busca pelo novo, a partir do diálogo com os grupos que desenvolvem e mantém as chamadas cosmotécnicas de Hui: movimentos de luta de base, indígenas, quilombolas, e quaisquer outros que não perderam a autonomia de pensar o território e suas práticas de existência em consonância com seus contextos. Os muros do desenvolvimento sustentável e social são antes muros de classe, de raça e de epistemicídio.
Conclusão
Diante da pouca efetividade das políticas de desenvolvimento sustentável em reduzir os avanços das atuais crises climáticas e ambientais, resultantes, sobretudo, dos modos hegemônicos de exploração e consumo dos recursos naturais; e da constatação do alinhamento existente entre a produção de novas tecnologias e interesses corporativos meramente comerciais, é evidente que o ritmo cada vez mais acelerado e automatizado da vida humana, a inércia e a condescendência das suas sociedades modernas, está nos levando a um lugar de não-retorno, onde os algoritmos de otimização e os novos empreendimentos arquitetônicos produzidos por ele sequer continuarão a ter serventia.
Chega-se o momento em que o pensamento científico, estarrecido por seus modelos de quantificação e redução da complexidade do mundo, parece estar sofrendo um nítido declínio, enquanto os povos, saberes e tecnologias anteriormente consideradas em vias de extinção frente à modernidade/colonialidade, começam a ser apontados como os caminhos mais seguros (e científicos) em direção a conservação e recuperação do meio ambiente. Esta percepção paradoxal, tem recebido uma crescente adesão por parte das comunidades acadêmicas e científicas (cada vez mais sensíveis às pautas ambientais e climáticas), assim como das próprias sociedades civis (que em todo o mundo têm reivindicado seus vínculos tradicionais e o direito a exercê-los). Esse já não é mais um horizonte distante, nem algo passível de contraponto teórico, e sim, uma realidade que em muitos lugares pode ser constatada com um simples olhar ao redor.
No Brasil e em grande parte da América indígena e afro-latina, a Amazônia, maior símbolo de riqueza natural do mundo, e como já mostrado, produto da ação antrópica dos habitantes originários desse vasto território, é, quiçá, a maior evidência material de que se é possível ter abundância e verdadeira riqueza (nos sentidos biótico e cultural) sem a necessidade de atividades industriais, extrativistas e agro pastoris de larga escala. Muitos arqueólogos dessa parte do globo têm sido enfáticos quanto a necessidade de uma perspectiva simétrica entre grupos ocidentais e não-ocidentais, informando que o que durante muito tempo se considerou um processo evolutivo espontâneo da humanidade, incluindo o que se entendia por avanços tecnológicos e industriais, foram, na verdade, um conjunto de opções tomadas pelas classes dirigentes dos estados nacionais e suas instituições. Opções estas que, mesmo já sendo refutadas das formas mais convincentes e sofisticadas, continuam a ser tomadas, desconsiderando não só os impactos da barbárie neoliberal como também as cosmovisões e saberes tradicionais realmente propositivos em relação aos problemas ambientais.
Resta saber se no decorrer dos próximos anos –nada animadores por sinal– tais questões serão abordadas para além dos interesses do mercado e do encantamento com as tecnologias hegemônicas, pondo em prática a reparação histórica dos males cometidos à natureza e aos povos subalternizados ■
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NOTAS
1. Conferência ONU realizada no Rio de Janeiro para discutir a agenda ambiental global.
2. Este artigo utiliza a expressão “tecno-entusiastas” como uma forma de provocar todos aqueles que têm se interessado de forma acrítica por tecnologias digitais e desenvolvimento de algoritmos na área.
3. Dependendo do tipo de otimização, o algoritmo pode ser ou não considerado como Inteligência Artificial (IA). Por exemplo, todo algoritmo de otimização inspirado em sistemas da natureza, como métodos evolutivos, pode ser entendido como sistemas de IA, mas nem todo sistema de IA contém todas as abordagens de algoritmos de otimização, como o método branch-and-bound, que se trata de um método exato (Biondi Neto, Becceneri, Demisio, Fávero e Silva Neto, 2009).
4. A estratégia de busca por soluções de um determinado problema.
5. O World Green Building Council, se define como a maior organização mundial que direciona o mercado da construção civil para assuntos da sustentabilidade.
6. A imagem acompanha o texto “Missão”, no site do Green Building Council Brasil, em março de 2022. Disponível em https://www.gbcbrasil.org.br/sobre-nos/.
7. Vale lembrar que na contramão desta tendência, o Congresso da Sociedade Iberoamericana de Gráfica Digital – SIGRADI abordou o tema Technopolicas em sua XXII edição, acontecida na cidade de São Carlos, São Paulo, Brasil em 2018.
SECCIÓN DEBATES
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Landim, G. do R. e da Costa Júnior, J. L. (Noviembre de 2022 – Abril de 2023). Um pensamento para além do emergente. O desafio dos arquitetos na intersecção tecnología e meio ambiente. [En línea]. AREA, 29(1). Recuperado de https://area.fadu.uba.ar/area-2901/landim_costa-junior2901/